As palavras são sempre magras ou curtas para dizer tudo por inteiro, precisamente porque são apenas palavras. São signos, sinais, símbolos, representações de algo maior do que elas, e por isso nunca chegam. O corpo do significado é sempre maior que a veste que o significante lhe empresta, e sempre assim será enquanto a linguagem for apenas uma esforçada tentativa de mitigar a solidão. Mas há alturas em que as palavras são ainda mais magras ou curtas. Por exemplo, quando acaba o amor e as palavras estão gastas, como no poema de Eugénio de Andrade. Ou quando falta àquele que as usa a arte e o engenho de as encontrar e manejar. Ou também quando lhe falta a vontade ou a capacidade de comunicar – e para isso são precisas palavras, mas também conseguir pôr-se no lugar do outro, o que ainda é mais difícil do que juntar letras e dar-lhes um sentido. E há aquelas alturas em que, por mais vocabulário, arte e vontade e capacidade de comunicar que se tenha, as palavras não chegam, mesmo quando sobejam. E não é por defeito seu, mas por grandeza do que se quer descrever ou dizer com elas, não é por insuficiência do significante, mas sim por absoluta exuberância do significado.
Aquela era uma dessas alturas, num dos braços do Vatnajökull, o maior glaciar da Islândia e o segundo maior da Europa. Pode dizer-se tanta coisa, podem alinhar-se tantos e tão intensos adjetivos. Cabem exclamações, arrepios, alegrias, e sussurros em que medo e respeito se impõem. Até êxtase. Sim, tudo isso, pode dizer-se tudo isso, pode procurar–se – e até encontrar – as melhores palavras. Mas nada disso é, verdadeira e inteiramente, o que ali está, nem sobretudo o que se sente e se pensa perante o que ali está. Assombro? Sim, assombro. Pequenez e desamparo na presença de forças tão vitais? Sim, sem dúvida. Vertigem, abismo, beleza, escuridão, luz, gelo, pedra, o começo do mundo, avassalamento, opressão, ferocidade, conforto, deslumbramento, redenção? Tudo isso, sim, mas também nada disso. Tanta coisa, tantas palavras que parecem certas, mas não é bem, nunca é exatamente isso, as palavras não chegam, matam-nos de fome.
Alturas como estas não são suficientes para acreditar em deuses, mas quase, e – como diria Luis Buñuel, num dos seus desamparos disfarçados de ironia e desassombro – quem dera acreditar, como quereria acreditar, mesmo não o dizendo com clareza, com o pudor de uma maldisfarçada nostalgia de deus. Ou talvez já acredite, embora sem saber ou sem querer. Quem sabe? Quem sabe se reconhecer a magreza das palavras não é já porta de entrada para os deuses. Mesmo que seja só metáfora literária, a verdade é que, como repetidamente escreve Valter Hugo Mãe no seu livro “Desumanização”, a Islândia (país de prosopopeia) é um lugar onde muitas vezes se vê (se sente?) a boca de deus. Assim mesmo, com minúscula mas com sentido superlativo, e não tanto o deus das religiões, mas o que vive nas coisas e habita a poesia – com as palavras, mas também para lá delas.
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