Histórias edificantes e perguntas inquietantes


Ficam aqui alguns relatos e perguntas, de propósito para inquietar, neste primeiro dia de verão. Para que histórias destas não se repitam e os leitores se consciencializem de que não são pedintes da Saúde, mas sim parceiros na Saúde


Numa altura em que o país todo se comoveu com o caso do bebé Lourenço e assistiu aos milagres da ciência; no momento em que, finalmente, é dada ordem superior para que os pais não sejam expulsos da sala de partos quando de uma cesariana, mas em que, por outro lado, o número de cesarianas atinge valores inacreditavelmente altos e que ultrapassam largamente o que a OMS prevê para países com o grau de desenvolvimento de Portugal (sobretudo nos hospitais privados, onde mais de dois terços dos bebés nascem por cesariana, o que deixa qualquer um de boca aberta), o meu cão chama-me a atenção para algumas coisas que, mesmo que raras, acredito, são dignas de nota para que não se repitam. E não vêm nos jornais, como o bebé Lourenço.

Antes disso, quero deixar uma palavra de apreço, respeito e admiração pelos milhares de médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde que acompanham as grávidas, o casal, os recém-nascidos, e contribuem para que nascer em Portugal equivalha a nascer em condições extremas de segurança, estando nós num ranking muito superior à maioria dos países do chamado “mundo civilizado”. Todavia, nascer em condições de segurança e com saúde não quer dizer nascer em ambiente humanizado e acolhedor. Infelizmente, ainda são muitos os casos em que o casal e o bebé são tratados como produtos numa fábrica, o que pode ter consequências deletérias, não apenas para os envolvidos, mas para impulsionar a corrente que defende, com o risco que isso acarreta, o nascimento em casa.

Aqui ficam alguns casos, para reflexão, que o meu cão me contou nos nossos passeios.

Ana Rita. Primeira gravidez. Primeiro filho. Assustada, amedrontada. Entrou no hospital mal teve a primeira contração e foi aconselhada a não sair – era o primeiro, “mais vale não arriscar”. Foi numa segunda-feira. Nove da manhã. Além dos profissionais do serviço estavam presentes estagiários, enfermeiros, médicos, professores, alunos de Medicina e de Enfermagem, e ainda uns estudantes que estavam a fazer um trabalho de fim de curso. Foi “tocada” 14 vezes. Sem sequer lhe pedirem licença. “Abra as pernas!” – era a ordem que vinha do interno que a “assistia”. E com um olhar, o aprendiz de medicina fazia sinal a um novo grupo para se aproximar. O circo vinha à cidade.

Música de fundo na sala de partos? Rítmica e suave, para acalmar mães, pais, bebés e profissionais? Não há verba? Qualquer leitor de CD custa uma pouca de chica larica. A ciência mostra que a música é uma atividade estruturante, apaziguadora, securizante. Não apenas para os utentes, mas também para os profissionais. Não é por acaso que, em todos os serviços bem organizados, a música é uma constante. Provavelmente, em Portugal discutir-se-ia, mais do que a presença da música, se o Tony Carreira é piroso ou se Bach é só para crânios.

A mãe de um bebé com 4,300 kg foi assistida por uma enfermeira estagiária (numa maternidade central), apenas com o médico a observar. Resultado: a estagiária, com o stresse, esqueceu-se de fazer a episiotomia. Rasgadura perineal total. Nem vou entrar em pormenores. Vem nos livros, mas não há jurisprudência no nosso país. Que a enfermeira estivesse aflita, acredito – só quem não passa por estas situações de início de prática é que não sua as estopinhas. Mas sem fazer não se aprende. A questão que fica é onde estavam aqueles que deveriam estar a ensiná-la.

“Cala-te!” – assim foi pressionada uma mãe porque se queixava de dores. “Cala–te.” “Cala.” “Te.” O imperativo na segunda pessoa do singular. Depois foi uma dose de sedativos que já não deu para perceber nada. Portou-se mal? Então fica numa maca no corredor, depois de ter o bebé, durante quase duas horas, e depois vai para um quarto onde está uma grávida… em trabalho de parto. Trabalho e o resto, porque a outra acabou por ter o bebé no quarto, com a primeira a tentar ajudar mas sem conseguir. Não, enganam-se, não foi num filme de terror num canal da TV Cabo. Foi num hospital central…

Porque é que alguns profissionais (de alguns serviços) são tão crípticos, poucas falas e meias-palavras, quando se trata de falar de alguma doença do bebé, deixando os pais na mais profunda das ansiedades? “Sabe… o seu bebé…” – e depois dizem que tem de ficar mais um dia, fazer este ou aquele exame, etc., etc., etc. Palavreado médico, jargão profissional, e se calhar não há ninguém que pergunte, muito simplesmente, depois de ouvir essas notícias que quebram a contemplação, estragam a adoração e interrompem os processos de bem-estar fisiológico e psicológico, com destaque para o leite materno: “Como é que se sentem?” “Posso explicar-vos o que quiserem, tomem o vosso tempo. Eu espero aqui!” Está sempre tudo cheio de pressa. Porque aqueles estão quase a ir e virão outros. Somos todos, afinal, pedaços estatísticos de contabilidades e casuísticas.

Para terminar, deixem-me mencionar um pai que não pôde entrar numa consulta de obstetrícia, num hospital central deste país, porque a enfermeira lhe comunicou que “a partir dali, só as mulheres”. O machismo existe em todo o lado, mesmo que disfarçado de bata branca e eventualmente com uma cara laroca. Ó senhora enfermeira: sabe que aquele pai, que tinha 34 anos, já há 32 andava a fantasiar o seu bebé? O seu dele, senhora enfermeira, não o seu seu. Porque se fosse o seu, a senhora enfermeira entrava na sala, e provavelmente atrás de si um séquito maior do que o das visitas presidenciais.

Ficaram as perguntas, de propósito para inquietar, neste primeiro dia de verão. Para que histórias destas não se repitam e os leitores se consciencializem de que não são pedintes da saúde, mas sim parceiros na saúde.

Pediatra

Escreve à terça-feira

Histórias edificantes e perguntas inquietantes


Ficam aqui alguns relatos e perguntas, de propósito para inquietar, neste primeiro dia de verão. Para que histórias destas não se repitam e os leitores se consciencializem de que não são pedintes da Saúde, mas sim parceiros na Saúde


Numa altura em que o país todo se comoveu com o caso do bebé Lourenço e assistiu aos milagres da ciência; no momento em que, finalmente, é dada ordem superior para que os pais não sejam expulsos da sala de partos quando de uma cesariana, mas em que, por outro lado, o número de cesarianas atinge valores inacreditavelmente altos e que ultrapassam largamente o que a OMS prevê para países com o grau de desenvolvimento de Portugal (sobretudo nos hospitais privados, onde mais de dois terços dos bebés nascem por cesariana, o que deixa qualquer um de boca aberta), o meu cão chama-me a atenção para algumas coisas que, mesmo que raras, acredito, são dignas de nota para que não se repitam. E não vêm nos jornais, como o bebé Lourenço.

Antes disso, quero deixar uma palavra de apreço, respeito e admiração pelos milhares de médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde que acompanham as grávidas, o casal, os recém-nascidos, e contribuem para que nascer em Portugal equivalha a nascer em condições extremas de segurança, estando nós num ranking muito superior à maioria dos países do chamado “mundo civilizado”. Todavia, nascer em condições de segurança e com saúde não quer dizer nascer em ambiente humanizado e acolhedor. Infelizmente, ainda são muitos os casos em que o casal e o bebé são tratados como produtos numa fábrica, o que pode ter consequências deletérias, não apenas para os envolvidos, mas para impulsionar a corrente que defende, com o risco que isso acarreta, o nascimento em casa.

Aqui ficam alguns casos, para reflexão, que o meu cão me contou nos nossos passeios.

Ana Rita. Primeira gravidez. Primeiro filho. Assustada, amedrontada. Entrou no hospital mal teve a primeira contração e foi aconselhada a não sair – era o primeiro, “mais vale não arriscar”. Foi numa segunda-feira. Nove da manhã. Além dos profissionais do serviço estavam presentes estagiários, enfermeiros, médicos, professores, alunos de Medicina e de Enfermagem, e ainda uns estudantes que estavam a fazer um trabalho de fim de curso. Foi “tocada” 14 vezes. Sem sequer lhe pedirem licença. “Abra as pernas!” – era a ordem que vinha do interno que a “assistia”. E com um olhar, o aprendiz de medicina fazia sinal a um novo grupo para se aproximar. O circo vinha à cidade.

Música de fundo na sala de partos? Rítmica e suave, para acalmar mães, pais, bebés e profissionais? Não há verba? Qualquer leitor de CD custa uma pouca de chica larica. A ciência mostra que a música é uma atividade estruturante, apaziguadora, securizante. Não apenas para os utentes, mas também para os profissionais. Não é por acaso que, em todos os serviços bem organizados, a música é uma constante. Provavelmente, em Portugal discutir-se-ia, mais do que a presença da música, se o Tony Carreira é piroso ou se Bach é só para crânios.

A mãe de um bebé com 4,300 kg foi assistida por uma enfermeira estagiária (numa maternidade central), apenas com o médico a observar. Resultado: a estagiária, com o stresse, esqueceu-se de fazer a episiotomia. Rasgadura perineal total. Nem vou entrar em pormenores. Vem nos livros, mas não há jurisprudência no nosso país. Que a enfermeira estivesse aflita, acredito – só quem não passa por estas situações de início de prática é que não sua as estopinhas. Mas sem fazer não se aprende. A questão que fica é onde estavam aqueles que deveriam estar a ensiná-la.

“Cala-te!” – assim foi pressionada uma mãe porque se queixava de dores. “Cala–te.” “Cala.” “Te.” O imperativo na segunda pessoa do singular. Depois foi uma dose de sedativos que já não deu para perceber nada. Portou-se mal? Então fica numa maca no corredor, depois de ter o bebé, durante quase duas horas, e depois vai para um quarto onde está uma grávida… em trabalho de parto. Trabalho e o resto, porque a outra acabou por ter o bebé no quarto, com a primeira a tentar ajudar mas sem conseguir. Não, enganam-se, não foi num filme de terror num canal da TV Cabo. Foi num hospital central…

Porque é que alguns profissionais (de alguns serviços) são tão crípticos, poucas falas e meias-palavras, quando se trata de falar de alguma doença do bebé, deixando os pais na mais profunda das ansiedades? “Sabe… o seu bebé…” – e depois dizem que tem de ficar mais um dia, fazer este ou aquele exame, etc., etc., etc. Palavreado médico, jargão profissional, e se calhar não há ninguém que pergunte, muito simplesmente, depois de ouvir essas notícias que quebram a contemplação, estragam a adoração e interrompem os processos de bem-estar fisiológico e psicológico, com destaque para o leite materno: “Como é que se sentem?” “Posso explicar-vos o que quiserem, tomem o vosso tempo. Eu espero aqui!” Está sempre tudo cheio de pressa. Porque aqueles estão quase a ir e virão outros. Somos todos, afinal, pedaços estatísticos de contabilidades e casuísticas.

Para terminar, deixem-me mencionar um pai que não pôde entrar numa consulta de obstetrícia, num hospital central deste país, porque a enfermeira lhe comunicou que “a partir dali, só as mulheres”. O machismo existe em todo o lado, mesmo que disfarçado de bata branca e eventualmente com uma cara laroca. Ó senhora enfermeira: sabe que aquele pai, que tinha 34 anos, já há 32 andava a fantasiar o seu bebé? O seu dele, senhora enfermeira, não o seu seu. Porque se fosse o seu, a senhora enfermeira entrava na sala, e provavelmente atrás de si um séquito maior do que o das visitas presidenciais.

Ficaram as perguntas, de propósito para inquietar, neste primeiro dia de verão. Para que histórias destas não se repitam e os leitores se consciencializem de que não são pedintes da saúde, mas sim parceiros na saúde.

Pediatra

Escreve à terça-feira