Ao quarto livro publicado no nosso país, aquele que é invariavelmente apresentado como o maior escritor argentino depois de Borges, continua nessa margem dificílima de transpor em que, sem um público que trate de um mais amplo resgate, resta ao pó traçar obsessivamente os contornos de uma obra fadada a deslocar-se da periferia para o centro das atenções do público literário quando o tempo puder ajuizar sobre o que há a reter e a esquecer.
Juan José Saer morreu em 2005, aos 67 anos. Um argentino que se desterrara em mais do que um sentido, vivia há muito num apartamento com vista sobre a estação de Montparnasse, em Paris, com a mulher francesa, Laurence. Escolheu fixar-se e viver até ao fim dos seus dias ali não apenas pela esplêndida vista, mas pela comodidade que lhe oferecia, apanhando regularmente “o comboio no rés-do-chão” para ir dar aulas de literatura na Universidade de Rennes, na Bretanha.
Deslocado do eixo literário da capital, Saer nasceu em 1937, em Serodino, na província de Santa Fé a um casal de sírio-libaneses. Na sua escrita não se encontra qualquer vénia ao fervor próprio de Buenos Aires, nem ao mundo do tango, as estravagâncias barrocas nada lhe dizem, e o realismo mágico que se tornou o selo da literatura de origem latino-americana que vingou mundo fora não teve nele um cultor nem sequer um adepto.
Um homem de opiniões, não era de grandes mesuras e muitas vezes a sua tentativa de contrariar alguns equívocos e os logros rodeando a literatura valeu-lhe a fama de polemista. Afirmações como a de que a literatura latino-americana não é uma categoria estética, de que o “boom” da obra de autores como García Márquez e Vargas Llosa no exterior se reduz a um fenómeno de mercado, de que a originalidade em si não representa nenhum valor ou de que Cortázar não é um bom romancista, não ajudaram a sua popularidade no meio. De resto, Saer disse explicitamente que não lhe interessava tornar-se um best-seller, ou só o admitiria “num mundo em que Ungaretti e Guimarães Rosa o fossem”.
Um dos alvos preferenciais deste escritor era o pós-modernismo, apontando para a forma como este cede às condições institucionais dominantes e ao mercado em detrimento de uma busca de renovação estética. Neste particular é importante referir como hoje algumas das mais relevantes análises deste momento de crise no campo literário como na geralidade das artes, se prende com o que entre nós a catedrática de Estudos Portugueses Silvina Rodrigues Lopes identificou como uma tendência para a produção de “simples objectos de consumo, ao nível de qualquer outro artigo de supermercado”. Negando a anti-institucionalidade – característica definidora do projecto modernista –, e isto “em nome da acessibilidade da literatura, e de outros tipos de discurso, ao grande público, o que corresponde à negação máxima de qualquer dimensão inconformista”. Rodrigues Lopes adianta que “aquilo a que se chama ‘grande público’ só pode ser composto por gostos esclerosados, pelo que há de mais resistente à mudança, e por conseguinte pelo que há de mais anti-artístico, a negação do movimento”.
Saer combateu a ideia de uma literatura latino-americana, notando que “a filosofia dos autores do boom foi o mercado (…) eles perceberam que nos EUA se começava a ver esse tipo de coisa que ia ser, na minha opinião, a destruição da literatura latino-americana”. Numa entrevista que deu na Univesidade de São Paulo, em 1997, o escritor recordou que “as categorias estéticas passam a ser retóricas quando se tornam prescritivas. A prescrição do romance não está dada de uma vez e para sempre. O romance tem de mudar se quer permanecer vivo. O realismo que define o romance, se quer seguir existindo, não pode continuar empregando os mesmos cânones realistas, a mesma visão ingénua do espaço, do tempo, do carácter e dos sentimentos humanos etc.”
Apesar da firmeza e do tom mais ríspido das suas apreciações, aqueles que conviviam com Saer não deixaram de notar a atitude reflexiva e uma certa vacilação que impregnava o seu discurso. São aspectos que marcam indelevelmente a sua ficção, seja no modo como capturava ambientes e caracterizava as suas personagens, criando um lânguido encantamento, enquanto os seus longos parágrafos são notórios por, sem castigar a clareza, rever obsessivamente cada passo, preocupando-se menos em contar do que em presentificar.
“A arte de narrar” é o seu único volume de poesia, e à escolha do título Saer atribui a vontade de deixar “um pequeno manifesto pessoal”. Sobressaindo nos seus poemas o carácter narrativo, na sua prosa não deixou de debater-se com a tentação de fazer versos. “Sempre pensei em elaborar um romance em verso, mas suponho que não o farei — seria por demais trabalhoso, confesso. Um de meus romances, ‘El limonero real’, comecei a fazer em versos, e depois me foi demasiadamente difícil manter uma tensão poética ao longo de centenas de páginas sem incorrer no prosaísmo. Num determinado momento me pareceu que talvez fosse mais interessante tentar elaborar uma música pessoal na prosa, encontrar ritmos pessoais, novos, inéditos na prosa.”
A precisão da prosa deste escritor, a sua virtude na multiplicação de ritmos e a inventidade das soluções que lhe permitem cruzar, do plano exterior das descrições para, no momento seguinte, entrar no íntimo das personagens e seguir o curso das suas inquietações e pensamentos, aliam-se à vacilação e incerteza, de modo que os seus romances resultam muitas vezes em intrincados puzzles queformulando verdadeiras investigações – e o título do seu último romance é “A Investigação” – dos vários planos que somam a realidade.
Além do seu último romance, publicado por cá em 2002, a Editorial Caminho ofereceu-nos nas excelentes traduções de António Gonçalves outros dois – “A Ocasião” (1989) e “As Nuvens” (2001). A estes junta-se agora “Cicatrizes”, com o selo da Cavalo de Ferro e tradução de Miguel Filipe Mochila.
Tratando-se daquele que é considerado o primeiro romance da maturidade literária de Saer – e para alguns será mesmo a sua grande obra-prima – este é um romance que desafia a estrutura narrativa pela forma como servindo-se de um homicídio constrói quatro visões pessoais e entretece de forma subliminar uma série de leituras filosóficas, com as quatro narrativas interdependentes a construir um retrato giratório da província de Santa Fé num período identificado e particularmente conturbado da sua história.
Ao i, Miguel Filipe Mochila diz que a temática desta se prende com “uma inércia generalizada, ecoando uma ausência de sentido que acaba por ser uma falta de sentido histórica”. Repassando o trauma da queda do peronismo, Saer nunca se lhe refere directamente, furtando-se ao registo documental e não caíndo num realismo social, mas deixando que sejam as vidas privadas das personagens a reflectir aquele momento. E isto fica patente, de acordo com o tradutor, “com independência das suas condições e circunstâncias – sejam sócio-económicas, sejam taras particulares, vícios ou hábitos – na forma como vivem de forma amorfa e desvitalizada”.
O grande desafio passa, assim, necessariamente, para o lado metaliterário, diz Mochila: “Como fazer narrativa num tempo que está privado da sua própria estrutura narrativa? Um tempo sem finalidade é um tempo sem narrativa. Daí a obsessão descritiva, reiterativa, claustrofóbica, circular, de Saer.” Com evidentes ecos do nouveau roman, o experimentalismo quebra com os modelos da ficção, e não o faz pelo puro divertimento – embora essa dimensão aparentemente gratuita esteja lá, muitas vezes revelando o paralelo da literatura com o jogo: a caça, as cartas, o bilhar… O escritor parece sugerir que tudo se perde, e a própria sociedade se dilui na forma como as relações se corrompem, e dão lugar ao isolamento e ao cinismo.
Contudo, e mesmo quando a possibilidade de redenção elude as personagens nos tiques cómicos que afinal compõem uma tragédia, a literatura certamente ganha com “as derivas sádicas, os momentos delirantes e desarrazoados, a dimensão psicológica das subtilezas dos acontecimentos viciados pelas perspectivas divergentes”, sublinha Mochila.
Algo que ficou claro pela recepção bem menos que efusiva deste genial romance é o grau de exigência que pede do leitor. Espelhando um reflexo duríssimo da realidade que experienciou no seu país, Saer vai mais longe no seu esforço de crítica social não cedendo a um romance de tese, mas colocando o apocalipse ao nível dos versos de T.S. Eliot: “Esta é a forma como o mundo acaba/ Não com um estrondo, mas com um gemido.” O cenário é, portanto, o da dissolução, com “a colectividade representada na sua humanidade regressiva”, explica o tradutor. E os gorilas – termo que era usado na argentina por referência a certo tipo burguês – exemplificam esse esvaimento do ânimo social, num mundo “liderado pelo capricho e pelo impulso”.