É um mal conhecido em muitas casas. Chega o final do dia e remexer a caixa dos legos, fazer um puzzle ou mesmo ler um livro é a última coisa que apetece depois do dia de trabalho. Um estudo divulgado no fim de semana revela que mais de dois terços dos pais sentem que os filhos queriam passar mais tempo com eles e têm dificuldade em dizer-lhes que não têm tempo para brincar. Um terço chega mesmo a inventar desculpas para não o fazer. O trabalho é o principal motivo: oito em cada dez pais consideram que é a atividade profissional que os impede de passar mais tempo com os filhos.
O inquérito foi promovido pela marca de sumos TriNa para assinalar o Dia da Família, celebrado ontem. Foram inquiridos 410 pais de norte a sul do país, com filhos entre os seis e os 12 anos. Durante a semana, a maioria dos pais refere que a atividade principal que têm com os filhos é ver televisão. Só 38% dos pais brincam mais de meia hora diariamente com os filhos e quatro em cada dez não acham que lhes dedicam tempo suficiente. Só ao fim de semana é que aumenta o tempo de brincadeira, com nove em cada dez a passar mais de quatro horas em atividades conjuntas com os filhos.
Diana, assessora, conhece bem o sentimento. Os filhos ainda são pequenos, têm quatro anos e 15 meses, mas nem por isso sente menos pressão. Desculpas para fugir às brincadeiras? “Aos magotes”, sorri, embora nunca tivesse pensado nisso. “Mas as minhas desculpas não era tanto por estar cansada, era por até à hora de deitar estar sempre a fazer coisas e, às vezes, continuava com eles já a dormir.” Conhece o sentimento de culpa, de não achar que tem o tempo admissível para os filhos entre a chegada tardia a casa, ter de cozinhar e de dar banhos. Sobretudo porque, até mudar recentemente de trabalho – em parte para tentar sofrer menos com isto –, raramente estavam o pai e a mãe juntos ao final do dia a lidar com todas as tarefas.
Cecília Galvão, psicóloga clínica e especialista em desenvolvimento infantil, admite que a preocupação com a indisponibilidade por parte dos pais tem vindo a aumentar. E que o sentimento de culpa, refletido no estudo, acaba por não ser uma boa ajuda no que toca à educação das crianças, pois leva a mais cedências. “A consciência de que não se tem o tempo de que se gostava pode ser algo positivo, se for orientado para tempo de qualidade, enquanto a culpa pode fazer os pais complicarem ainda mais a situação.”
A investigadora salienta que não deixa de ser impressionante que ver televisão seja a atividade mais recorrente, o que pode ser explicado por aparentemente dar menos trabalho. Mas não é tanto isso que deve preocupar os pais, acrescenta. “Se for um tempo de interação e não descurarem com isso outras atividades mais físicas, pode ser positivo”, explica a investigadora. Há, ainda assim, algo que devem ter em conta: “Uma criança não consegue relativizar os comportamentos dos adultos, assume-os como modelos. Se estiver a assistir a um debate em que vê adultos a discutir sem regras, por vezes pessoas importantes, pode assumir que aquilo é normal, e aí os pais têm de intervir a explicar que gritar e falar uns por cima dos outros não é boa educação.”
Não é tanto a ferramenta que importa, mas o espaço de convívio que se cria em torno da atividade, explica a investigadora. Da mesma forma, jogar consola, a segunda atividade mais frequente no caso dos rapazes, não tem de ser necessariamente nocivo. “Se for um momento de interação com o pai, em que discutem a melhor estratégia, pode ser uma boa oportunidade de desenvolvimento e superação.” Por outro lado, a investigadora destaca que, mesmo não brincando muito tempo, a maioria dos pais revelaram no inquérito que tomam o pequeno-almoço e jantam com os filhos, e mais de metade levam os filhos à escola. “Todos esses tempos podem ser mais bem aproveitados. Muitos pais dizem, ‘pergunto-lhes o que fizeram durante o dia e respondem ‘nada’’. A questão é saber conversar e, se jogarem e cantarem, estão a aproveitar o tempo.”
Cecília Galvão trabalha há 30 anos com pais e filhos e admite que a culpabilização é um sentimento crescente por parte dos pais, e justificadamente. “Ao contrário de outros países, em Portugal, a entrada de mulheres e homens no mundo do trabalho sacrificou, de facto, as famílias, pois não houve uma alteração da organização do trabalho. Na Holanda saem às 16 ou às 17 horas do trabalho e existe facilidade para trabalhar a partir de casa, já depois de os miúdos se terem ido deitar.” Cá falta flexibilidade laboral, admite. Mas também a ideia de brincar e descontrair é saudável. No estudo, são poucos os pais que sentem brincar com os filhos tanto como estes gostariam, mas os que o fazem dizem que isso os relaxa, o que pode ser um bom motivo para, culturalmente, os adultos investirem mais na sua capacidade de brincar. “Para ver o quanto isto é um problema cultural, basta dizer que temos um provérbio que diz ‘muito riso, pouco siso’.” Se a sociedade pode ajudar, a psicóloga clínica defende que também cabe aos pais descomplicar as brincadeiras. “Se só têm 20 minutos, não têm de o dizer ao filho nem de pegar num jogo como o monopólio, que sabem que vai levar imenso tempo a acabar e vai deixar toda a gente frustrada. Joguem às cartas, à bisca”, exemplifica. Outras ideias são incentivá-los a fazer de crescidos, instituir um dia sem televisão ou dar pistas para irem descobrindo coisas pela casa, enquanto os pais gerem as tarefas.
Mais devagar ou mais depressa, os pais aprendem os truques. Nos dias de trabalho, Diana admite que é mais difícil fazer as brincadeiras que “desarrumam”, como as pinturas ou mexer em plantas. Estão para começar a plantar uma mini-horta há um mês, mas ainda não houve tempo. “Entretanto, ela já andou a espalhar sementes pela casa.” Normalmente leva a mais velha para a cozinha para ver como se prepara o jantar, e até participar. Mesmo que seja só a mexer nas panelas e na loiça. O mais pequeno vai atrás e desarruma os tupperwares. Sabe bem estarmos todos juntos, mas o mais pequeno ainda se farta depressa”, sorri.