Muitas das fachadas dos armazéns da zona ribeirinha oriental de Lisboa, entre o Terreiro do Paço e o Parque das Nações, são verdadeiras caixinhas de surpresas.
Por detrás de uma parede rachada surge uma galeria de arte. Depois de um estuque velhinho, um restaurante inusitado, uma garagem de veículos elétricos ou um escritório de coworking.
O espaço que o i hoje revela não tem uma fachada “fingida” de velha, dado que os azulejos que cobrem o exterior do edifício de pastilha de vidro, verdes, novos e reluzentes, são o primeiro cartão-de-visita. E no interior, o fator uau continua. Aí, já não tanto pelo espaço cool, que também é, mas pelo que se passa lá dentro.
A chuva não impediu o i de ir nem aos AC/DC nem a este velho e novo armazém. Começámos a manhã na Praça Leandro Silva – mais conhecida por Jardim do Poço do Bispo –, no Instituto do Animal (IA), a assistir uma aula de sociabilização de cachorros.
Nascido há pouco mais de seis meses, o instituto é um projeto inédito no país, “dedicado à educação cientificamente fundamentada de animais de companhia, dos seus donos e de todos os profissionais do setor”.
A ideia e respetiva implantação partiu de Sílvia Machado, professora universitária na área da gestão que, há quatro anos, recebeu um desafio diferente. “A Faculdade de Medicina Veterinária da Lusófona convidou-me para ir dar empreendedorismo no primeiro curso de treinadores de cães dado numa faculdade, que era uma especialização tecnológica”.
Foi aí que percebeu não só as potencialidades do mercado como passou a compreender melhor como esta relação entre pessoa e animal é importante e especial, apesar de a conhecer de perto, dado que tem uma cadela com dez anos.
“Comecei a sentir que havia em Portugal donos que queriam compreender melhor os seus animais e certos comportamentos, e ainda só havia uma oferta de aulas um bocadinho avulsa, com pessoas que se dizem treinadores e não têm formação nenhuma.”
Por isso, todo o trabalho feito no IA é baseado em estudos. “Já se começa a massificar o conhecimento mais aprofundado dos animais. São coisas básicas, que isto não é uma ciência nuclear, mas às vezes é preciso falar sobre elas. Aliás, o trabalho que fazemos em todas as aulas vai buscar muito à sociologia e psicologia humana e depois aplica-se aos animais”, explica a diretora.
E há aulas para todos os gostos (e problemas). Para donos de cães e outros animais de estimação, há formações para ensinar o animal a andar à trela sem puxar, treinos de higiene – para o ajudar a fazer as necessidades fisiológicas no sítio –, aulas que ensinam a minimizar e gerir os problemas típicos de gatos e cães idosos, workshops que explicam aos donos o que fazer quando o cão fica sozinho em casa, noções básicas sobre comportamento felino, e a lista ainda não fica completa.
Para os veterinários, médicos, enfermeiros, técnicos auxiliares e estudantes de Medicina Veterinária, o IA disponibiliza também várias formações, entre elas “acabar com o stresse na ida ao veterinário”.
Mas também há workshops para treinadores e outros profissionais, bem como outras ações transversais. Por exemplo, sobre luto. Brevemente começará uma formação de oito horas sobre a legislação completa para animais de estimação.
Mas voltemos à manhã chuvosa e à aula a que assistimos, destinada a cachorros entre os dois e os quatro meses – quadro temporal que não é estanque. A plateia humana, composta pelos donos, era heterogénea, desde casais com mais de 80 anos a crianças em idade escolar.
Esta era a primeira aula de seis cachorros: Moca, Pingu, Surya, Mia, Kiko e Twinkie. E se começou com os latidos e cheiradelas habituais entre canídeos que não se conhecem, os ânimos foram acalmando enquanto a treinadora ia falando com os donos.
Paula Garcia, 40 anos, era personal trainer de profissão. E na prática é isso que continua a fazer, mas transferiu a área de ensino de alunos humanos para os de quatro patas. “Sempre tive cães e sempre mantive uma relação intuitiva com eles, mas chegou uma altura em que senti que precisava de aprender mais, pois uma aprendizagem autodidata não era suficiente.”
Foi então que descobriu, logo na primeira edição, o curso de treinadores de cães em que a cadeira de Empreendedorismo era lecionada por Sílvia. Foi a melhor aluna.Apesar de o grosso do trabalho ser maioritariamente com aulas ao domicílio de comportamento de cães já adultos, há uma tendência para que os donos se apercebam que, quanto mais cedo o cão for educado, mais equilibrado será no futuro.
“Os veterinários tratam a saúde física, nós a saúde mental.” Esta turma de seis cachorros, que sairá “diplomada” daqui a seis semanas (com uma aula a cada sábado), iniciou-se com uma aula sobre pisos.
Um a um, os donos vão levando os cães pela trela por um percurso em que os animais vão pisando várias texturas. Começam por percorrer uma grelha de plástico, passam por um recipiente com água, contornam pinos, passam dentro de um tubo e, finalmente, por um tapete de relva sintética.
A tímida Moca, uma beagle, foi uma das mais rápidas a fazê-lo, atrás do seu brinquedo favorito, excedendo todas as expectativas da dona e da treinadora. “Boa, garota. Grande surpresa!”, exclama Paula enquanto dá os parabéns à aluna.
Já Pingu recusou-se a entrar no tubo. Acabou por fazê-lo após a cadela Surya ter interrompido o colega e passado rapidamente a estrutura de ponta a ponta. “Ainda bem que isto aconteceu”, diz Paula. “Isto chama-se facilitação social, são coisas que eles aprendem por observação. O Pingu percebeu que não lhe ia acontecer nada depois de a Surya ter passado e arriscou”.
Todos, melhor ou pior, vão completamento o percurso. Só Mia e Kiko não conseguiram fazer os exercícios. Mia foi encontrada aos dois meses num caixote do lixo e ainda está aterrorizada com a presença humana e de outros cães.
“Mas estar aqui sem ladrar já é uma vitória para ela”, diz Paula, que também acompanha a cadela fora destas aulas. Kiko mostrou-se mais interessado na brincadeira do que em qualquer recompensa que lhe tivesse sido oferecida.
“O reforço positivo ou a recompensa depende de cão para cão, deve ser feita sempre com o que eles mais gostam e funciona como moeda de troca. Pode ser comida, um brinquedo ou até o próprio dono. O Kiko está completamente desconcentrado e, para ele, a melhor recompensa, neste momento, é brincar”, explica Paula.
No fim, a treinadora faz um breve resumo dos pontos essenciais. “Não levar os cães a reboque, a ideia é convencê-los a fazer, e não obrigá-los. Não os repreender durante as aulas para eles não terem medo da próxima vez. É importante que eles sintam que este é um ambiente seguro e o encarem como um parque de recreio, a sociabilização é isto mesmo.” As questões levantam-se.
“Ele anda sempre atrás de nós, 24 horas por dia. O que podemos fazer para melhorar até à próxima aula?”, perguntam Maria Isabel e João Calado, ambos com 82 anos, que se inscreveram nas aulas para aprenderem a lidar com Kiko, o primeiro cão de companhia que possuem.
“Não tenham medo de o deixar sozinho”, diz Paula. “Mas isso não é contraproducente?”, diz João. “Não, entre quatro a sete horas é normal. O Kiko é, neste momento e como chamamos na gíria, um cão-sombra. Não alimentem isso, mantenham o vosso espaço privado para ele perceber qual o dele.”