Entre a espécie de lua-de-mel que se vive entre Estados Unidos e Cuba e a perspetiva de ver derrubado o governo do maior país da América do Sul, o agudizar da crise venezuelana passa entre os pingos da chuva. O que até nem seria uma má notícia para Nicolás Maduro, o homem que tem feito de tudo para se agarrar ao poder depois de a oposição ter alcançado uma maioria de dois terços no parlamento, não fosse o sentido literal da expressão: a chuva, ou a falta dela, pode dar a machadada final num regime que tendo as maiores reservas de petróleo do mundo não consegue fugir aos piores índices económicos da atualidade.
A seca que praticamente deixou sem reservas a barragem de Guri – responsável pela produção de quase 70% da eletricidade consumida no país – não será da responsabilidade do regime socialista. O mesmo já não pode ser dito da política que leva o país a depender deste tipo de produção energética – que embora esteja em prática há mais de 50 anos podia já ter sido alterada em 17 anos de governação – e muito menos das medidas que vão sendo anunciadas pelo Executivo para minimizar os danos.
Mais bonitas sem secador “As mulheres devem evitar os secadores de cabelo para poupar luz, as senhoras ficam mais bonitas quando se penteiam com os dedos, de forma natural”, defendeu o próprio presidente, no início de abril, ao anunciar que as jornadas laborais da função pública excluiriam as sextas-feiras durante os meses de abril e maio – um “exemplo de poupança da administração pública nacional”. Mas o “período mais difícil”, como lhe chamou Maduro, ia apenas a meio quando se percebeu que não seria suficiente.
E na semana passada Maduro voltou a inovar, limitando a semana laboral da função pública apenas a terças e quartas-feiras – “pelo menos nas próximas duas semanas” disse o herdeiro de Hugo Chávez, que tem complementado a gestão da crise com outras medidas de impacto relativo. Além da inclusão das escolas públicas na ‘gazeta’ de sexta-feira, dos cortes diários de quatro horas nas principais cidades, o país mudou de fuso horário – o relógio adiantou 30 minutos, não na tradicional adaptação ao horário de inverno mas um regresso ao que foi norma até 2007, sob o pretexto de se economizar energia com mais meia hora de luz solar ao final da tarde.
Embora principalmente simbólicas, as propostas não deixam de ser duras para uma população que há mais de um ano se vê forçada a encarar filas de várias horas para comprar bens básicos – e encarecidos por uma inflação que o FMI diz já ter atingido os 720%. E mais duras se tornam quando a realidade não corresponde aos anúncios: na terça-feira passada, quando o apagão de quatro horas já ia em 12, a população de Zulia mostrou a sua indignação.
Às imagens de lojas pilhadas – que se repetem um pouco por todos os centros urbanos do país – juntaram-se cenas mais violentas, como a queima de um autocarro ou os ataques à sede regional da energética estatal e às instalações municipais da cidade de Jesús Enrique Lossada. “Aquele que recorra à violência perante uma circunstância destas, com o decreto de emergência vigente, terá de sofrer todo o peso da lei porque está a cometer graves crimes contra a segurança e a pátria”, reagiu um Maduro que “luta todos os dias pela paz”.
Greve geral indefinida Acossado também no interior do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), o presidente nem renuncia à luta nem ao populismo. Faz ameaças como presidente e como futuro líder da oposição – “se a oligarquia algum dia fizer algo contra mim e chegar a este palácio por uma via ou por outra, ordeno-vos a declararem uma rebelião e a decretar uma greve geral indefinida até à obtenção da vitória”, disse no discurso de 1.º de maio – e apesar do estado das finanças continua a ser um “defensor da classe operária”, pois anunciou um aumento de 30% nos salários de função pública e nas reformas.
“O problema aqui é que os salários sobem de escada e a inflação de elevador”, reagiu Víctor Álvarez, que até foi ministro da Energia durante o reinado de Chávez. Na oposição propriamente dita as reações não são melhores: “Todos os aumentos anunciados por este senhor são uma burla”, disse Henrique Capriles, o governador do Estado de Miranda que foi derrotado por Maduro nas presidenciais de 2013.
Capriles é um dos rostos da aliança de partidos opositores que em dezembro infringiu a primeira derrota eleitoral do regime em 17 anos. Mas a maioria parlamentar qualificada tem visto todas as instituições do país cumprirem o prometido por Maduro – ou seja, revogarem todas as suas medidas, incluindo a lei que amnistiaria 73 presos políticos.
Numa rara exceção, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) autorizou na semana passada a recolha de assinaturas para um referendo que pretende encurtar o mandato de Maduro. A oposição tinha 30 dias para recolher as assinaturas de 1% do eleitorado (195 mil de 19,5 milhões) mas em dois dias recolheu mais de 2,5 milhões, segundo Capriles. Mas o CNE logo apareceu a esclarecer que “se deve cumprir o prazo de 30 dias para passar à fase de constatação”, que obrigará os opositores a juntar quatro milhões de assinaturas para convocar o referendo.
Capriles explica as intenções do que diz ser, à semelhança do Tribunal Constitucional que revogou a lei da amnistia, mais um órgão estatal ao serviço do PSUV: segundo a constituição, se o referendo se realizar em 2017 – ou seja, a dois anos do final do mandato – e a votação for pela queda do presidente, este será substituído pelo vice até novas eleições em 2019. Se o referendo ditar o seu afastamento em 2016 terão de ser convocadas eleições de imediato.
“Queremos a via constitucional, que o povo decida”, disse o governador. Tendo em conta o sucesso na recolha de assinaturas pode estar aqui uma pequena luz ao fim do túnel da transição democrática. O drama para os venezuelanos, como lembrava ontem o think-tank Stratfor, é a perspetiva de “um futuro governo ter certamente de impor uma austeridade duradoura. Resumindo, a instabilidade política e económica será um facto na Venezuela durante anos”.