Talvez o mérito maior de uma fotografia ainda esteja na possibilidade de um disparo raptar um instante e o impor à luz de uma atenção melhor, uma que se torna primeiro reveladora e depois acusatória. Um disparo que rasga o tempo, colhe a flor dos terramotos, essa evidência exemplar aos olhos do observador. Aquele que, como notava Susan Sontag no ensaio “Olhando o Sofrimento dos Outros”, perante uma imagem com uma aflitiva carga de testemunho, diante de um momento de absoluta fragilidade vivido por outro, “podemos ficar de olhos pregados nestes rostos durante muito tempo e não chegarmos ao fim do mistério, e da indecência, do nosso próprio papel como espetadores”. Desviado do rolo de infinitas sucessões de imagens, onde tudo se esbate, a singularidade de um momento é capturado contra a sucessão imparável dos acontecimentos. Num instante terrivelmente concreto, é como se a luz fosse refratada pelo pensamento, assumindo matizes, convidando a uma leitura e outra depois dessa, com a imagem a refazer-se na tensão entre o que nos pode dizer e o que não pode. Primeiro conta, depois cala-se, e o observador sente-se observado.
Um bebé é passado através de uma falha numa vedação de arame. Antes que nos situem na fronteira entre a Sérvia e a Hungria, antes que nos digam que se trata de outra dessas imagens impossíveis que passaram a integrar o catálogo do quotidiano, há ali uma evidência que, depois do choque, nos transporta, tornando-se difícil manter uma distância segura. Mesmo depois do tremor de emoções, o que se impõe a quem olha é essa vertigem que nos faz pensar na hipótese de estarmos diante de um momento de “verdade”. Foi esta a palavra que usou Sander Zwart, o comissário da edição deste ano da exposição de fotojornalismo World Press Photo, que regressa ao Museu da Eletricidade, em Lisboa.
“A verdade é sempre subjetiva”, admite o representante da organização que há 60 anos mantém os seus objetivos e ação inalterados, procurando divulgar o melhor do fotojornalismo que se realizou ao longo do ano. E essa subjetividade, a dúvida, a busca da verdade, implica que cada um faça a sua leitura, clarifica Zwart numa visita guiada à imprensa.
A fotografia do australiano Warren Richardson, que conquistou o 1º prémio desta edição, parece uma imagem apanhada de relance. Um pouco desfocada, sem grande definição, a preto e branco, o bebé é entregue a um refugiado sírio que acabara de conseguir entrar União Europeia a coberto da noite. A legenda conta-nos que se trata de um grupo de refugiados que procuravam uma aberta na cerca de quatro metros de altura que o governo húngaro mandou erguer em julho, cobrindo toda a extensão da fronteira com a Sérvia. Desesperados por encontrar um caminho antes que a cerca ficasse concluída – o que veio a acontecer a 14 de Setembro -, o grupo do qual o bebé fazia parte passou quatro horas escondido sob um pomar, esquivando-se à polícia de fronteira, sendo alvo do gás pimenta, antes de passar outro obstáculo na busca de uma terra prometida cada vez mais elusiva.
Boa parte das reportagens premiadas nesta 59ª edição do World Press Photo estão relacionadas com o conflito na Síria e com aquele que foi o maior movimento de pessoas na Europa desde a II Guerra Mundial. São mais de 150 as fotografias em exibição até ao dia 22 de maio, no espaço do museu à beira Tejo. Uma vez mais, o júri teve uma tarefa hercúlea na seleção dos melhores trabalhos, tendo concorrido 5775 fotógrafos de 128 países com um total de 82951 imagens.
Mas a edição deste ano é ainda marcada pela presença de Mário Cruz, da agência Lusa, que aos 28 anos se torna o 5º português distinguido pelo World Press Photo. Vencedor na categoria “Assuntos Contemporâneos”, o fotojornalista concorreu com “Talibés, Escravos dos Tempos Modernos”, um ensaio fotográfico sobre crianças e adolescentes que são feitos escravos no Senegal. A falta de regulamentação levou a que muitas destas daaras – escolas corânicas senegalesas – sirvam meramente de fachada para que alguns grupos tomem a seu cargo dezenas de milhares de crianças – os talibés – muitas delas raptadas por traficantes. Além de subnutridas, vivem em espaços sobrelotados e insalubres, sendo forçadas a mendigar nas ruas oito a nove horas por dia, entregando o que recebem ao seu marabout (professor).