Apanhámo-los num intervalo do encontro e a partilha é imediata. “Como é que nunca nos tínhamos visto e sentimos o mesmo?”, sorri Daniel, romeno, depois de ouvir o Bernardo falar sobre o trabalho de sensibilização feito em Portugal pela Acreditar e pelos jovens sobreviventes a que a associação chama carinhosamente “barnabés”. Daniel tem 23 anos e foi diagnosticado aos oito com uma leucemia linfoblástica aguda, o cancro mais frequente na infância. Bernardo, da mesma idade, descobriu aos 12 um tumor de cérebro. Juntam-se à conversa Anna, moldava de 24 anos, diagnosticada aos 15 com um linfoma não-Hodgkin, e Zuzana, checa de 23 anos, que aos 14 descobriu um sarcoma de Ewing, um cancro nos ossos.
Falam abertamente sobre a doença, que lhes mudou a vida mas também os ajudou a ser quem são hoje. E apesar do sofrimento que não esquecem, só querem que os outros os vejam de uma vez por todas como pessoas normais.
Lembram-se da primeira vez em que sentiram que precisavam de estar num encontro como este da PanCare, de falar com outros sobreviventes?
Anna: O cancro pode deixar muitas sequelas, consequências dos tratamentos a níveis hormonais mas também efeitos psicológicos. Ficamos ansiosos, entramos em depressão, choramos muito. Eu tornei-me uma pessoa muito emotiva, a precisar de perceber o que esperar de diferente no meu corpo. A certa altura comecei a perceber que tinha de pesquisar, de encontrar quem estivesse a passar pelo mesmo e me pudesse, de certa forma, orientar. As pessoas que estão de fora ainda olham para nós de forma estranha. O problema é deles, claro, mas esse olhar tem um efeito em nós, deixa-nos mais nervosos. A certa altura descobri a PanCare e já fui a vários encontros. Ter acesso a informação faz toda a diferença, sentimo-nos menos desamparados. Por isso muitos de nós acabam por envolver-se em associações de voluntários. É uma forma de dar mas também de receber.
Daniel: Por sentir o mesmo decidi tirar Medicina. Achei que, se estivesse no sistema, ia ter mais informação para mim e para os outros. Por exemplo, aqui na conferência da PanCare percebi que em Portugal já existe algum acompanhamento dos jovens que tiveram cancro ao longo da vida, faz-se a transição das consultas de pediatria para as consultas de adultos. Na Roménia não temos nada disto. Sou eu que tenho de estar atento aos meus sintomas, de pensar que a radioterapia pode estar ligada ao aparecimento de cancros mais tarde. Este contacto com outras realidades ajuda-nos a perceber o que temos de fazer ainda nos nossos países.
Que memórias têm da doença?
Bernardo: Eu tinha 12 anos quando fui diagnosticado. Era jogador profissional de andebol e, uma vez quando estava em Barcelona para participar num torneio, a brincar na rua, um amigo deu-me com um barra na cabeça. A partir daí comecei a ter dores de cabeça enormes. Quando voltei a Portugal fiz uma ressonância magnética e descobri que tinha um tumor no cérebro.
Nunca tinha havido sintomas?
Bernardo: Não. Quer dizer, tive vários problemas de saúde quando era pequeno. No dia em que fiz um mês tive 11 ataques cardíacos. Os médicos sabiam que havia alguma coisa mal mas nunca descobriram o que era – pensavam que fosse a chamada síndrome de morte súbita. Só quando viram o tumor anos mais tarde é que voltaram a observar as ressonâncias que tinha feito em bebé e perceberam que, já na altura, havia algo que não tinham visto.
Há quanto tempo terminaste os tratamentos?
Bernardo: Fiz tratamento durante mais ou menos dois anos. Não fiz quimioterapia nem radioterapia porque o tumor era mesmo no centro do cérebro. Tomei comprimidos para as dores e fiz uma operação nos Estados Unidos porque em Portugal nenhum médico quis operar-me. O tumor não foi totalmente removido mas permitiu-me ter mais espaço no cérebro para o sangue poder circular. Foi o suficiente para não ter tantos problemas. Tenho de fazer ressonâncias quase todos os anos. E quase todos os anos também tenho uma crise de dores de cabeça, vou ao hospital, tomo medicação para as dores e passa.
Anna: Os meus pais nunca me disseram que eu tinha cancro, descobri sozinha a ver os papéis que levámos para casa do hospital.
É comum?
Anna: Imagino que sim. Não é por mal, os nossos pais não querem que soframos.
Bernardo: Não aconteceu comigo porque notei que algo não estava bem, mas sei que acontece. Não sei que idade tinhas…
Anna: Tinha 15.
Bernardo: Pois, eu era mais novo mas acho que, de qualquer forma, com ou sem a palavra percebemos quando algo está mal. Acho que os meus pais sempre quiseram ser abertos comigo porque pensaram que o primeiro passo para combater o cancro era enfrentar a doença. Aliás a primeira pessoa que me disse que tinha cancro foi o director do hospital. Fomos à consulta no IPO e ele disse que eu tinha uma espécie de granada no meio do cérebro. Um tumor, que podia explodir a qualquer momento. E disse que não sabiam muito bem o que iam fazer.
Como é que se reage a essa informação tendo 12 anos?
Bernardo: Bom, eu pensei estou lixado, que foi basicamente o que me disseram depois outros médicos. Não sei, depende das pessoas. Há sempre duas formas de reagir: posso ficar sentado a chorar e não fazer nada ou decidir que tenho de fazer alguma coisa. Lembro-me sempre de uma frase que o cirurgião nos Estados Unidos me disse antes de eu regressar para casa: ‘Lembras-te dos médicos que te disseram que ias morrer, vais morrer depois deles.” Claro que não desejo mal a ninguém mas são as duas formas de ver as coisas. Uma é: ‘estás lixado e não há nada a fazer’ e outra é pensar que podes sobreviver e podes arranjar formas de viver melhor. Acho que se nos mentalizamos que vamos sobreviver fazemos mais por isso, procuramos mais.
Daniel: Eu não pensei nada disso ao início. Tinha oito anos e lembro-me de me dizerem que tinha leucemia. Não sabia o que era leucemia, por isso o maior choque foi de repente estar no hospital e não poder sair de lá. Foi completamente do nada. Tinha ido fazer análises ao sangue e mal viram os resultados mandaram-me para o hospital. Só saí de lá passados três meses e meio. O drama foi esse, não foi o diagnóstico porque não fazia ideia. As pessoas na Roménia não falam de cancro. É um tabu, mesmo hoje. E depois a leucemia, bom… Basta dizer que continua a ser a forma mais dramática de morrer nos filmes. Quando começas a perceber isto começas a bater mal. As pessoas pensam ‘tens leucemia estás morto’. Daí ter achado muito interessante o testemunho do Bernardo sobre o trabalho da associação, de levar informação para fora, integrar os doentes, os sobreviventes e chegar à população. É incrível que, sem nunca termos falado, tenhamos as mesmas preocupações.
Bernardo: Por isso é que estes encontros são tão importantes. Nós, na Acreditar, começámos a cooperar com uma associação espanhola no ano passado, a Asion [Associação de Pais de Crianças com Cancro]. De repente percebemos que o nosso voluntariado podia ir muito mais longe porque eles, que estão só do outro lado da fronteira, fazem as coisas de forma diferente. Não temos de estar só no hospital, podemos fazer eventos fora, organizar workshops. Às vezes é difícil teres ideias quando estás muito fechado na tua realidade e basta um momento de partilha ou intercâmbio para as coisas evoluírem.
E tu Zuzana, como foi o teu contacto com o cancro?
Zuzana: Fui diagnosticada quando tinha 14 anos, com sarcoma de ewing. Acho que tive muita sorte porque era bastante estúpida na altura. Ou inocente. Disseram qualquer coisa tipo tumor e eu não percebi que era cancro. Pensei que tinha alguma coisa, mas se estava no hospital era para ser tratada e ia correr bem. Só passados três meses de tratamento é que percebi o que era. E aí é que cai tudo. Dás contigo a perguntar: ‘Mãe, vou morrer?’ e eles sem saber bem o que dizer.
Passaram por isso?
Bernardo: Sim, revejo-me completamente. Não sei se foi umas horas ou dias depois da tal conversa com o director do IPO, mas quando a palavra deixa de ser ‘tumor’ para ser cancro a carga torna-se maior.
Zuzana: E muitas vezes não é por nós. No hospital não me lembro de os médicos ou enfermeiros dizerem a palavra cancro, acho que a regra é não dizer para ser mais suave. Só me apercebi de que a doença era aquela porque comecei a ouvir das pessoas que lá iam ou falavam com os meus pais dizerem “tem cancro, é horrível”. E aí começas a pensar: será que devia estar a sentir-me de forma diferente? De qualquer forma, hoje agradeço essa ingenuidade, não foi demasiado duro do ponto de vista psicológico porque não pensei muito seriamente na morte. Hoje, por saber muito mais, seria diferente.
Um diagnóstico na infância é menos duro?
Zuzana: Não diria isso, acho que depende muito. É sempre uma situação nova e difícil. Depende muito da sensibilidade das pessoas à nossa volta e para os pais é difícil controlar todos esses sentimentos. Mas não há uma reação definida. Isso é importante perceber: temos todos formas diferentes de reagir.
Bernardo: Conheci um rapaz na Acreditar que tinha sido diagnosticado com leucemia aos quatro anos. A primeira pergunta que fez à mãe quando chegou ao IPO foi se tinha cancro. Reconhecia o símbolo da televisão. É uma história, vale o que vale, mas até um miúdo de quatro anos, sem nunca lhe terem dito nada, pode chegar ao hospital com alguma noção boa ou má da doença. Seja como for, quando estamos lá continuamos a ser crianças mas somos forçados a crescer porque é tudo mais sério e há uma preocupação à nossa volta que se calhar não sentiríamos tão cedo.
Qual é a parte mais difícil?
Daniel: Estar separado da sociedade, da escola, dos amigos, da família.
Bernardo: E os problemas que isso pode trazer. A vida muda de repente. Não é só a tua vida, é a dos teus pais, dos teus irmãos. Toda a gente tem de se adaptar.
Daniel: E depois dos tratamentos… É suposto chegarmos a casa depois de meses no hospital e recuperarmos a nossa vida. Não dá, temos de recomeçar tudo. As pessoas olham para ti com aquele ar ‘mas tiveste cancro, como é que estás vivo?’, como se não te esperassem.
Bernardo: E o que é a nossa vida nessa altura? Se uma pessoa está um ano sem aparecer na escola mudou tudo, os colegas, os amigos. São duas mudanças seguidas. Tens cancro, pára tudo e só tens de pensar em sobreviver. Ficas curado e tens de recuperar a tua vida.
E para ti Anna?
Anna: Para mim o mais duro foram as sequelas, as complicações que aparecem mais tarde. Por causa dos tratamentos as minhas pernas não cresceram, tenho problemas nos ossos. Não tenho o período há três anos. Tenho problemas na tiróide. Tudo isto manda-nos abaixo, não vai embora quando os tratamentos terminam.
És muito bonita Anna.
Zuzana: Podes crer.
Anna: Honestamente isso não interessa. Preferia ser feia e ter as duas pernas saudáveis. Claro que me sinto feliz por estar viva mas este tipo de problemas consomem-nos. E começas a pensar: como é que vai ser o futuro? Se as pessoas saudáveis têm tantos problemas, de emprego, de encontrar alguém, como é que tu que passaste por tudo isto e ficaste marcada e com menos autoestima vais conseguir? Eu era uma pessoa mais positiva. Hoje sou positiva, se não fosse não estaria aqui. Mas era diferente.
Em que é que a sociedade podia ajudar?
Daniel: Pode perceber definitivamente que hoje, e cada vez mais, o cancro pode ser tratado e não é uma sentença de morte. Há 80 anos a pneumonia era uma sentença de morte e hoje já não é, ninguém pensa nessa doença como se fosse. Na Roménia o estigma ainda é enorme: por vezes quando os miúdos regressam à escola são isolados porque há receios de que contaminem os outros. Não aconteceu comigo mas temos tidos vários relatos na associação em que sou voluntário.
Anna: Fiz parte do meu tratamento em Kiev, na Ucrânia, porque não havia os equipamentos necessários na Moldávia. E aí percebi que ainda existem diferentes abordagens no tratamento: no meu país davam grandes doses sem pensar muito nos efeitos secundários e em Kiev senti-me muito melhor porque as doses eram mais pequenas e, além disso, davam-nos medicação para não ficarmos enjoados. Havia esse cuidado. Acho que deve haver a preocupação de que os doentes sofram o menos possível nos tratamentos, dando-lhes tudo o que pode ser uma ajuda para enfrentarem a doença com uma melhor disposição e pensamento positivo sem estarem completamente esgotados.
Em que pensas Zuzana?
Zuzana: Concordo que as pessoas têm acima de tudo de perceber que cancro não significa morte. Quando vou falar às escolas a primeira coisa que faço é mostrar imagens de crianças a sorrir no hospital. É preciso acabar com esta ideia de que é um lugar demasiado pesado com uns pobrezinhos a sofrer. Temos de passar uma mensagem de esperança, de que é possível superar a doença e que essa força vem de dentro mas também deve vir de fora.
Bernardo: E as pessoas têm de aprender a conviver normalmente com os sobreviventes. Vamos ser cada vez mais.
Como veem o vosso futuro?
Zuzana: Todas as pessoas têm algum problema na vida que as atrapalha. A única diferença é que nós temos um problema e sabemos qual é. E depois temos os problemas normais dos jovens, as mesmas ansiedades, os mesmos receios. Há bocado perguntavas pelo pior da doença e a mim se calhar o que me marca mais hoje e me torna mais diferente foi ter perdido tantas pessoas. O pior para mim não foi o meu tratamento, foi quando o tratamento dos outros falhou. Ver amigos meus, pessoas da minha idade, morrerem. Mas se isso dói muito, acho que também nos dá desde cedo a noção de que a morte está aqui e todos vamos morrer. E isso faz-me pensar que tenho de viver a vida o melhor possível – vi como podia acabar tudo num piscar de olhos. É um sentimento misto. Odeio o cancro. Não por causa do meu tratamento mas pelas pessoas à minha volta e amigos que fiz e que não tiveram a possibilidade de viver mais. Mas por outro lado o cancro fez-me querer viver.
Anna: Sim, acho que depois de passar por isto damos mais valor à vida. Temos outras prioridades. Não ligo nada à roupa ou a estar na moda, coisas de que as raparigas da minha idade gostam. Dou valor ao amor, à bondade, ao simples facto de estar viva.
Daniel: Não vejo o cancro como uma maldição mas como uma parte da minha vida que contribuiu para o que sou hoje. Sou o Daniel que sou por causa do cancro. E conseguires integrar isto faz toda a diferença: o cancro é como qualquer coisa que me pudesse ter acontecido.
E tu Anna?
Anna: Às vezes penso assim. Sem o cancro nunca teríamos vindo a Lisboa… (risos)
Bernardo: No fundo é conseguires falar do cancro com orgulho. Não pelo que destruiu mas pelo que construiu em mim. A certa altura deram-me 3% de probabilidade de viver. Fui forçado a viver cada dia não como se fosse o último mas como se fosse o primeiro, uma oportunidade. O cancro foi talvez o meu maior professor. Claro que existe o medo, sei que amanhã pode aparecer alguma coisa, todos os anos tenho a minha crise de dores de cabeça, mas o que sinto no dia a dia é que tenho de aproveitar a vida.
Daniel: Em qualidade e não quantidade.
Zuzana: Estamos a dizer isto mas claro que tudo depende. É a nossa ideia mas somos pessoas que têm isto relativamente bem processado. Vimos a este encontro por isso. Conheço pessoas que tiveram cancro e simplesmente nunca mais quiserem falar nisso, fecharam esse capítulo.
Conhecem muitos casos desses?
Anna: Tive um amigo no hospital com leucemia que simplesmente desistiu de viver. Não conseguiu encontrar qualquer lado positivo. Mas não podemos fazer juízos. Era boa pessoa e morreu. A doença afeta todas as pessoas e quando alguém morre é devastador, injusto. Lembro-me de uma menina pequenina que a certa altura conheci no hospital. Era impecável, sempre bem disposta a tagarelar, com opinião sobre tudo. A minha avó chegou a dizer que ainda ia ser ministra. Conseguiram tratar tudo para ela ser operada no estrangeiro mas acabou por morrer um dia antes do transplante. Estava tão doente no dia que a vi pela última vez… Ficamos muito ligados às pessoas, não só nós como as nossas mães e os nossos pais uns com os outros. E quando o pior acontece há sempre momentos mais escuros em que nos sentimos pessimistas, sozinhos.
Bernardo: Não é fácil, mas temos de encontrar estratégias. Não podemos viver com medo todos os dias. É virar as coisas a nossa favor: tenho de viver o melhor possível todos os dias porque não sei até quando vou cá estar.
Zuzana: Sim, mesmo em relação aos que partiram, o que digo a mim mesma é que estou feliz por ter conhecido estas pessoas, por ter estado com elas.
Que palavra vos descreve melhor?
Daniel: Na Roménia temos a palavra temerari. É como combatente e sobrevivente ao mesmo tempo. Não é como ser sobrevivente de um terramoto. É a pessoa que sobrevive porque luta.
Bernardo: Eu detesto a palavra sobrevivente por isso. Não faz sentido.
Zuzana: Bernardo, o que significa o nome ‘barnabés’ da vossa associação?
Bernardo: Na verdade não quer dizer nada. Há São Barnabé, um dos primeiros cristãos, mas acho que não tem nada a ver com isso. Era só um nome giro em português, soava bem.
Zuzana: Temos de arranjar um nome carinhoso em checo.
Daniel: Acho que o que nos define é a palavra normal. Somos normais. Hoje ainda há pessoas que não acreditam quando digo que tive cancro. Olham para mim tipo ‘meu, mas és igual a nós!’. Devia ter cara de quê, extraterrestre?