Mike El Nite. O Hasselhoff do hip-hop

Mike El Nite. O Hasselhoff do hip-hop


Uma reportagem do tempo em que se corria para um carro para ouvir o novo disco do nosso artista preferido. Aqui foi apenas para escutar – e dissecar, com gosto – “O Justiceiro”, disco de estreia do rapper lisboeta. Cinco portas, onze faixas a precisar de consumo. Rap eletrónico como poucos fazem .


Há coisas que a internet não matou. Ou, para ser mais preciso, ainda que o tenha feito sobra sempre a possibilidade de se ignorar esse extermínio. Algo que se é para acontecer exige-se que aconteça com estilo. Precisamos de um recuo, precisamos que em 2016 a World Wide Web seja ainda um exotismo apenas acessível a bolsos de trilionários e de gente cujos óculos sempre se fixam na ponta do nariz. Assim fosse e ainda se justificavam histerismos do tempo da cassete, uma matilha de cinco que pedia o carro emprestado a uma das mães para escutar aquele último disco que um deles calhou de conseguir comprar no mercado negro. 

Aqui estamos nós. Local do crime marcado para o parque de estacionamento dos Meninos do Rio porque se é para ser com estilo tem que ser Swag On, ainda que Mike El Nite seja mais Swag Off. Posto o dado geográfico que apresenta o artista de lado diga-se que apesar da reportagem dentro de um carro ser coisa do puro rap, dos 90, “O Justiceiro”, disco de estreia do rapper lisboeta hoje editado depois de dois EPs, é tudo menos obsoleto. Só que tudo a seu tempo, nada de meter a mudança errada, até porque aqui vamos de travão de mão.

“Fazia isso com álbuns de outros artistas e com as minhas malhas para mostrar aos amigos mais próximos. Ou então quando acabava de gravar… íamos logo para o carro para ver como estava a soar nas colunas”, explica Miguel Caixeiro, nome próprio do Justiceiro. O Knight Rider que parece ter encontrado o seu K.I.T.T. em Dwarf, produtor que o permitiu “continuar nesta linha de misturar o hip-hop com a cena eletrónica”, coisa que, justiça lhe seja feita, é rara nesta paragens atlânticas. 

Mike El Nite assumiu o lugar do pendura, poiso de onde nos guiou para um raio-x do disco, uma espécie de comentário ao vivo e em direto. E se há coisa que importa dizer é o foco dado aos samples, o primeiro tema, por exemplo, começa com o genérico de “Horizontes de Memória”, de José Hermano Saraiva, daí que a música se chame “Horizontes”. “Nos títulos de faixas fui muito pelos samples, quis reinventar o sample português, pegámos bastante nisso, trap, beats sempre épicos, e samples que apelassem à memória nacional”, explica. Daí que, de “O Justiceiro”, se retire coisas como José Figueiras “A cantar o tirolês” – patente no single “T.U.G.A” – Beatriz Costa e a “Aldeia da Roupa Branca” – no tema “Água Fria”, com ProfJam – tal como um interlúdio que é uma espécie de manifesto anti-Dantas mas mais anti-haters, quatro minutos de Mike El Nite a declamar a sua poesia 2.0, em homenagem a Almada Negreiros e a Mário Viegas. 

Enquanto prosseguíamos na tracklist, Mike El Nite ia gesticulando e debitando as letras, entusiasmo que se adivinha na forma como explica o input da série “Knight Rider”: “A mensagem que queria deixar tinha a ver com isso, então, mais uma vez, remeter o nome da personagem e da série para aquilo que queria fazer, não é exatamente o que se passa na série mas é a minha abordagem do que é fazer justiça a um estilo musical”, conta o rapper já depois de termos chegado ao ponto alto do disco. “Não sei se estás preparado para o que vem aí”, avisa-nos.

Eis que começa a surgir um sample de “Eu Sei Tu És”, dos Santamaria… coisa que em existindo espaço no chão do carro era termo-nos atirado. Optámos por fazê-lo apenas com o pescoço e perguntar o que lhe passou pela cabeça. O pai de Nite é cantor pimba e, por isso mesmo, esse universo pertence-lhe. “Com oito anos vibrava com os Santamaria a sério”, afirma antes de acrescentar: “Passados muitos anos é curioso que em festas que faço com o meu grupo de amigos a música ‘Eu Sei Tu És’ aparece sempre. É algo que me tem vindo a acompanhar e pensei que tinha que utilizar isto num beat. Quando estávamos a fazer a malha percebemos que o sampling estava demasiado explícito, a nível de copyrights isto ia dar filme, então contactei-os diretamente, falei com eles e adoraram a música. Estamos a tratar ainda da parte burocrática mas estou feliz por eles terem gostado”. 

Caricata talvez a relevância que Mike El Nite dá à aprovação dos Santamaria, porque para o artista sempre lhe interessou o esbater de barreiras, essa artifício sempre insistente que gera preconceitos entre gente que não gosta de rap e malta que é fundamentalista do boom bap, da abordagem mais crua. “Um dos meus grandes objetivos sempre foi ter gente que não tem nada a ver com hip-hop a dizer que isto está bem feito, quero desarmar as pessoas de argumentos negativos, quero que o público do hip-hop perca algum preconceito que ainda tem em relação à passagem dos tempos e à maneira como as coisas mudam. Quando me dizem: ‘Isto não é a coisa real do rap’, para mim não precisa de ser, isto é outra cena, se quiserem que isto não seja hip-hop na vossa ótica tudo bem, é música, é como me expresso”, chuta, sem rodeios. 

O play dá agora lugar ao stop, onze faixas depois Mike El Nite lá larga a sua expressão mais típica: “Meu granda puto”, seguindo de um satírico: #estamosjuntos. Nós, ele, José Hermano Saraiva, José Figueiras, Santamaria e, como não podia deixar de ser, o eterno David Hasselhoff. O Justiceiro do rap está para ficar.