A baixa autoestima dos portugueses faz com que o elogio aos compatriotas só possa medrar quando proferido por estrangeiros. Quando esse momento chega, as lusas gentes passam rapidamente do desprezo ao elogio hiperbólico, cuspinhando com fúria o apodo “o melhor do mundo” em todas as frases, desde o bom-dia dado à família (“viram ontem o melhor do mundo?”), passando pelo pedido de café ao balcão (“aquilo é que foi o melhor do mundo!”) e percorrendo todas as conversas telefónicas do dia (“um gosto, ter o melhor do mundo!”).
O processo de cultivo dos “melhores do mundo” está na maior parte das vezes confinado ao mundo desportivo. Muito raramente chega a personagens do mundo da política. Quando tal acontece, vale redobradamente a pena estudar estes amores difíceis.
António Guterres chegou a primeiro--ministro nos estertores do longo consulado cavaquista e o contraponto com o predecessor era evidente. Guterres surgia como demasiado bem-falante, demasiado comunicativo, demasiado inteligente, demasiado competente. Marcelo, que é para isso que servem os amigos, não perdeu a ocasião de o batizar como “picareta falante”. Como só em Portugal sói acontecer, as virtudes (bem-falante, comunicativo, inteligente, competente), por excessivas, passaram a quase defeitos. E como é normal nos amores difíceis, também Guterres não se reviu por completo no povo que lhe calhara em sorte e que por duas vezes lhe deu uma maioria, sendo a segunda uma novidade na prática política portuguesa: uma maioria de empate absoluto. Melindrado nos seus afetos, aproveitou, na sequência das eleições autárquicas de dezembro de 2001, o arrufo tardio e provocatório de Sampaio, e invocando o perigo do pântano (“la palude” italiana – o que é ter um primeiro-ministro culto e uma imprensa distraída…) demitiu-se. O que se seguiu, no que respeita à vida política portuguesa, é história, e como sabemos não foi propriamente edificante.
Guterres, que não obstante os resultados eleitorais obtidos em eleições legislativas (o 2.o e o 3.o melhores resultados da história eleitoral do Partido Socialista) sempre foi mais apreciado no estrangeiro do que em Portugal, abraçou uma carreira internacional a bem das causas humanitárias. E abraçou-a depois de se ter demitido do cargo de primeiro-ministro e de ter renunciado à vida política portuguesa. Se, ao contrário de outros, estivesse narcisisticamente a pensar no seu futuro, teria respondido positivamente ao convite que outros chefes de Estado e de governo lhe fizeram para se ter tornado então presidente da Comissão Europeia. Noblesse oblige.
Sempre tivemos em Portugal estrangeirados, os que cá viviam tentando dar uso à largueza de vistas trazida do estrangeiro. E bastas vezes o qualificativo “estrangeirado” se traduzia como inadaptado. Em tempos mais recentes temos podido observar a multiplicação de expatriados que levam para o estrangeiro a largueza de vistas que mal cabe em Portugal. Admitamos, em ambos os casos, que estamos perante “amores difíceis” em busca de uma solução trigonométrica.
Esta semana, em Nova Iorque e em sede de apresentação da sua candidatura a secretário-geral da Organização das Nações Unidas, Guterres teve uma excelente prestação e melhor público. Público internacional, mas também público nacional. Merece que a sorte lhe sorria e que as qualidades de “melhor do mundo” sejam postas ao serviço de um cargo que exige não menos do que isso.
Escreve à sexta-feira