A criança tem quase seis anos e é a primeira vez que vê um bicho daqueles. Um pequeno réptil que não prima pela beleza (à luz da estética comum), com olhos exoftálmicos e capaz de mudar de cor e fazer sua a que está à sua volta: verde aberto como as folhas das árvores, castanho forte como os troncos, cinzento claro como a terra arenosa do pinhal onde a criança e o camaleão têm o seu primeiro encontro. Pergunta ao pai o que é e porque muda de cor.
E ele – aliviado por estes serem daqueles quês e porquês a que sabe responder – diz-lhe que bicho é aquele e explica-lhe que muda de cor para se proteger, assumindo a do que está à volta para passar despercebido. Mimetismo é a palavra; o pai sabe-a e di-la à criança, mas explicando em detalhe o que significa, como convém a uma criança de quase seis anos, mais interessada nos mistérios e nas explicações deles do que em palavras de sete e quinhentos. E o pai sabe também que há homens e mulheres que possuem a mesma capacidade, mas isso não ensinará agora à criança, porque ela é ainda pequena para tais saberes. Mais tarde, provavelmente à sua custa (somando e digerindo as evidências cruas que nos vão levando aos poucos para o mundo dos crescidos), a criança aprenderá.
Aprenderá que há pessoas tão ou mais capazes de assumir a cor do que as envolve do que aquele camaleão que, com o espanto dos seus poucos anos, encontrou nessa tarde ao passear. E aprenderá também – se para isso tiver vida e a atenção necessária – que essas pessoas usam essa capacidade por três razões e cada uma terá a sua. Umas, como os pequenos répteis de olhos saídos, fazem-no para se protegerem, para se confundirem com o que as envolve, para não darem nas vistas, passando despercebidas quando é preciso.
Outras há que o fazem porque não possuem cor nenhuma, não têm identidade, são vazias de pensamentos, ideias e anseios, a não ser o anseio de terem os pensamentos e as ideias dos outros. Outras ainda – ao contrário dos camaleões--bichos e dos camaleões-pessoas que apenas se querem esconder –, fazem-no para se evidenciarem, para se fazerem notar por aqueles que elas julgam que têm poder ou que as podem distinguir ou agraciar com alguma coisa se elas se comportarem como eles ou se se parecerem com eles – se os mimetizarem.
E, dos três tipos de camaleões--pessoas, são estes os mais perigosos, porque ao medo dos que se escondem e ao vazio dos que nada são somam a astúcia. Não a astúcia instintiva e natural do camaleão-bicho, simples estratégia para sobreviver, mas a astúcia inteligente e pensada do camaleão-gente, calculada estratégia de viver.
Onde o bicho só tem instinto, o homem tem inteligência, e esta – como se sabe desde o princípio dos tempos – pode trazer a maldade. A maldade dos que mimetizam, mas também a maldade dos que são mimetizados e, muitas vezes, fazem dos camaleões-pessoas bichos ainda mais pequenos do que o reptilzinho de quatro patas que a criança viu naquela tarde pela primeira vez.
Escreve quinzenalmente à sexta-feira