O email nunca funciona. O autocarro demora sempre mais a chegar do que aquilo que se anuncia na paragem. As espetadas levam mais tempo ao lume, já nos avisou o sr. José Carlos lá da tasca a que sempre vamos. Não, não vamos evocar o trânsito porque é saída fácil. Mas podemos falar das filas para concertos que quase nunca compensam. Ou dos eventos gratuitos que só por isso viram gigantes e com lavabos inacessíveis – sim, até para os homens. Até pelo elevador esperamos.
Passamos demasiado tempo à espera. E se para uns é falta de paciência assumida – é agora que levantamos o braço –, para outros é cambalhota virtuosa. Esperar? Não, não esperar, optar por não o fazer. Prática agora colocada em prática por Bernardo Souto, Guilherme Gomes, João Reixa, Nídia Roque e Rita Cabaço, também conhecidos como Teatro da Cidade. Bom, provavelmente ainda são pouco conhecidos, mas tudo a seu tempo, que só amanhã se estreiam com “Os Justos”, de Albert Camus, no Teatro da Cornucópia, localização que não se dá ao calhas. Se aqui estão é porque para nenhum deles os corredores desta casa são inéditos. Isto apesar de já se conhecerem do tempo da Escola Profissional de Teatro de Cascais e da Escola Superior de Teatro e Cinema. E se aqui se estrearam enquanto jovens atores, agora é tempo de assumirem responsabilidades, condição de gente que, por isso, se sente sortuda: “Conhecemo-nos todos e viemos todos parar à Cornucópia por diferentes razões, mas é importante dizer que, se não fosse esta estrutura, isto não seria possível. Não tendo um espaço onde pudéssemos trabalhar o caminho para criar um espetáculo, ficaria muito mais complicado, somos uns privilegiados”, confessa Nídia Roque.
Ainda que agradeçam o gesto de apadrinhamento da Cornucópia, como qualquer nova companhia, oTeatro da Cidade sonha ter o seu próprio lugar. Ideia legítima que Guilherme Gomes nos confirma: “Seria o ideal, claro. Nascer uma nova companhia é quase como nascer um polo cultural que influencia tudo o que está à volta. Pensemos na Mónica Calle, que influenciou toda a paisagem em que se inscreve. Estas coisas que transcendem a criação artística, com um impacto social, interessam-nos bastante.”
Discurso que lá bonito é e que, para um leitor desconfiado, pode bem transformar-se em conversa de circunstância, discurso que sempre fica bem na hora de dar a conhecer um novo projeto ao público. Não seja assim, estimado leitor. Se estes rapazes o dizem é porque falam verdade.E não só. É que uma das primeiras iniciativas do Teatro da Cidade foi unir-se a uma conversa sobre o futuro da representação teatral no nosso país. Tal como já se dirigiram à faculdade: “Enquanto grupo temos a ideia de procurar trazer as pessoas ao debate teatral. Começámos a fazer uma ação da Faculdade de Letras, com o Mestrado de Estudos Teatrais. Não queremos apenas que as pessoas consumam o espetáculo, queremos que estejam dentro do processo, e isso pode conseguir despertar algum interesse”, clarifica João Reixa.
Regressemos à tal fatídica espera inicial. Foi Rita Cabaço que, numa conversa a oito – sim, que Ricardo Alas e André Pardal, não fazendo parte do Teatro da Cidade, são atores convidados para “Os Justos” – espécie de consultório alargado, nos atira para a realidade, aquela que dita a falta de estabilidade no meio teatral, aquela que ao Teatro da Cidade em específico os impede de continuar à espera que o email funcione corretamente: “O facto de criarmos um grupo e sabermos que há uma continuidade vai permitir-nos estar sempre no ativo e a fazer coisas que nos interessam fazer. Se não criássemos, estaríamos sempre dependentes de que alguém nos chamasse”, explica, pouco antes de Guilherme Gomes dar o retoque final na pintura de enquadramento do Teatro da Cidade.
Se é essa impaciência ou imaturidade que o fez avançar, nada disso aconteceria sem uma ponta de coincidência. “A urgência acaba também por ser uma coincidência. Já que nos encontrámos todos e já que faz tanto sentido estar com estas pessoas, queremos tentar construir a partir disso, até porque, acima de tudo, há uma espécie de liberdade artística. Como somos tão novos, acabamos por ir fazendo aquilo que vamos descobrindo, e isso é algo muito bonito”, diz-nos.
E, por fim, “Os Justos”. Espetáculo aconselhado por Luís Lima Barreto e que abraçaram, cedendo aos encantos dos paralelismos entre um grupo de jovens revolucionários russos e o Teatro da Cidade. Com as diferenças óbvias.Enquanto os primeiros planeiam um ataque para matar o grão-duque e derrubar a tirania que os afastava de proclamar a revolução, os segundos são mais idealistas e menos de atentados, pelo menos dos sangrentos.
“Acabámos por escolher este texto porque nos identificámos com as suas características primárias. Depois entusiasma-nos porque toca em temas que, ou porque nunca se fala neles, ou porque nunca pensámos neles, ou porque pensamos constantemente neles, são fundamentais para a identidade humana e para o pensamento contemporâneo. A dignidade individual, o valor da vida, a legitimidade para se matar são temas que devem ser pensados”, sugere Guilherme Gomes. Porque não?