Está a decorrer uma invasão do espaço público lisboeta. Novos marcos que vestem a pele daquilo que nos é hoje mais familiar. Saltaram do subterrâneo, das estações do metro, para as ruas da capital, e ao todo são já 46 estes aparelhos que apareceram vestidos numa roupagem amarela, como um sorriso a quem passasse. Isto para não causar choque aos que trazem ainda os sentidos despertos, sensíveis, quando circulam num ‘espaço-lixo’ cada vez mais ruidoso e constrangido, sujeito às tentativas por parte da publicidade de se impor como um percurso de obstáculos no caminho de todos.
O que são afinal estes mupis digitais? Tablets gigantes, telemóveis, réplicas do que já trazemos no bolso mas que se nos metem à frente numa “escala grotesca”, com mais de dois metros de altura, como porteiros com que agora esbarramos nos pontos mais concorridos da cidade. Mas este é amigo, chama-se Tomi. Já havia 34 espalhados por 19 estações do metropolitano, como Baixa-Chiado, Marquês de Pombal ou S. Sebastião. Através de ecrãs tácteis, estes meninos de duas faces, apresentam de um lado os conteúdos publicitários, e do outro, o tal lado supostamente mais simpático, com “tudo o que é preciso saber para conhecer a cidade: agenda cultural, notícias, onde comer ou fazer compras, que monumentos visitar, como se deslocar, ou até tirar uma selfie”. Esta informação é a mensagem que a empresa passa e os órgãos de comunicação veicularam sem qualquer apreciação crítica. O objectivo de qualquer empresário de sucesso hoje não pode deixar de ser conquistar o mundo, e José Agostinho, diretor-executivo da TomiWorld – a “primeira rede urbana de informação interactiva” em Portugal – assumiu que esperava ver o país, de norte a sul, “cheio de Tomis”.
Estes monólitos, como monumentos prenunciando uma nova era que já pontua as zonas mais movimentadas de Lisboa, não só não encontraram resistência, mas parecem ter-se integrado na movimentação urbana como se fosse até desejável que ali estivessem. É para suprir este vazio crítico que surge um filme como “Espaço Público”. Não fugindo à categoria do documentário, mas longe do que resulta normalmente de uma reportagem jornalística, esta reflexão da responsabilidade de Lucas Manarte e Bernardo Ferro está mais próxima da condição do ensaio. De resto, o próprio texto se constrói a partir de excertos de autores capitais das ciências sociais como Theodor W. Adorno, Pierre Bourdieu e Jean Baudrillard.
Este “filme-ensaio” de meia-hora terá a sua ante-estreia amanhã, às 21h30 na Cinemateca de Lisboa, numa sessão que contará com a presença de Manarte e Ferro e que, após a projeção, será seguida de um debate no qual participarão o ensaísta José Bragança de Miranda e o crítico literário António Guerreiro.
Num trabalho em que a imagem surge na dupla condição de evidência e ilustração, são as palavras que assumem preponderância, como “instrumento e matéria do pensar em acelerada erosão”, segundo destacam os autores no texto de apresentação do filme. Se não se pode falar propriamente numa obra que tenha como fito explorar as possibilidades técnicas ou os valores estéticos e artísticos da linguagem cinematográfica, aquilo com que o espectador se confronta é com uma eficaz denúncia de um quadro de situações aparentemente benignas mas que apontam afinal para a possibilidade do espaço que pertence a todos estar a saque por privados que camuflam as suas actividades lucrativas de uma condição benemérita.
O filme-ensaio transforma-se assim na prática de um “gesto de combate de ideias”, e se podemos sentir-nos mais ou menos impressionados, em maior ou menor concordância com a tese que nos é apresentada pelos autores, o certo é que se trata de um trabalho despido de quaisquer artifícios para nos embevecer, segurar a nossa atenção, resulta formidavelmente indo “direto ao assunto, porque a ‘marcha cumulativa de informação’ não nos permite mais delongas”. Este primeiro filme de Lucas Manarte e Bernardo Ferro coloca-nos de sobreaviso quanto a uma mudança profunda operada no espaço público: “Onde ontem havia polícias com cavalos e cassetetes, há hoje câmaras e telefones. Se antes se podia combater com multidões em marcha por uma avenida, hoje o combate é pela informação.”