Filho da Mãe. E do pai também, senão era coxo

Filho da Mãe. E do pai também, senão era coxo


“Mergulho” é o terceiro disco, que hoje apresenta no Teatro Maria Matos. Passámos uma tarde com Rui Carvalho, entre um bife da vazia e um saco perdido


Um filho da mãe que se preze repudia fast-food. “Claramente sou mais um gajo de tasca, gosto desse ambiente, mas não sou fundamentalista da tasca, conheço gente assim”, esclarece Rui Carvalho enquanto pede um jarrinho de tinto e um bife da vazia. Para alguém que não se diz fundamentalista, não está mau. Nós fazemos call. Tentar ser um tipo normal perante um filho da mãe não nos parece grande estratégia.

Em Roma ou no Restaurante Santo António, na Estrela, sê Filho da Mãe. O tal que aceitou almoçar connosco para, por uma vez, deixar a guitarra em casa e dedilhar um bife a pedir maus modos. Prática corrente na vida de Filho da Mãe. Só que é quando larga o cheiro a óleo dos restaurantes da capital, quando foge do sino da Basílica da Estrela e dos elétricos em fúria, que Filho da Mãe se encontra. Que o diga “Mergulho”, terceiro disco gravado no Mosteiro de Rendufe, em Amares, Minho. “Sair da rotina normal para ir para outro lugar põe-me num estado diferente. Acordo todos os dias a pensar naquilo, não há nada no meio, principalmente quando não tinha ideia de como seria o disco quando fui para lá”, explica.

Se assim for sempre, negócio fechado, que “Mergulho” tem tanto de recente como de obrigatório. Mais: chega a ser cómico, sobretudo pelos nomes que Filho da Mãe dá às faixas, coisas como “Um Dedo a Menos”, “Canção do Enrolado” ou até “Epilogo-me”. “Quando faço uma música creio que estou a imaginar uma história por trás, não propriamente uma letra, mas uma história que não consigo escrever. Os nomes, às vezes, têm a ver com isso. O disco foi feito muito de improviso, fiquei até à última sem nomes para muitas coisas. A música é dramática e intensa, e isso pode ser cómico, e eu gosto, passo a maior parte do tempo a dizer ‘merda’. É quase uma forma de cortar essa carga pesada, gozar um bocado comigo”, conta, antes de pedir o bagaço que acompanha o café.

E bem que precisava, que depois segue–se a provocação final. Jornalista que tem informações privilegiadas e não as utiliza, mais vale pedir reforma, por isso decidimos perguntar a Rui Carvalho se é verdade o que nos disseram: que o pai toca melhor que ele. “Isso é uma questão de interpretação. Toco guitarra por causa do meu pai, mas toco como a minha mãe se ela soubesse tocar, de emoção. Acho que isso é bastante discutível, agora que ele sabe mais de música e toca melhor no sentido mais profissional do termo, sem dúvida”, safa-se com distinção, sobretudo com a ajuda do malandro do bagaço – e diga-se que, para isso, já não somos filho da mãe, era só o que faltava.

Uma seca de tarde Largamos a Estrela antes que sejamos engolidos pelo corso do funeral do Nicolau Breyner e apanhamos um Uber já com a companhia de João Brandão, produtor do disco e um dos três suportes de Filho da Mãe para o concerto de amanhã no Maria Matos – Cláudia Guerreiro e João Nogueira são os restantes. Esqueçamos a viagem atribulada do motorista mais nervoso que a Uber alguma vez teve. A última paragem foi em Santa Apolónia, no HAUS, albergue de gente como Linda Martini e PAUS, onde Filho da Mãe decidiu ultimar os detalhes para o grande concerto de apresentação.

O ex-arqueólogo – sim, Filho da Mãe parece ter sido dotado para tarefas minuciosas – faz o aviso assim que chegamos ao HAUS: “Os ensaios são chatos, vais apanhar uma seca.” Frase que decidimos ignorar porque oportunidades destas, de testemunhar músicos com a mão na massa, não são o pão nosso de cada dia.

É óbvio que não pode existir um ensaio sem problemas técnicos. O que seria desse momento sem problemas no amplificador, sem um amuo do afinador ou sem uma quebra de tensão da terceira corda. E se isso, para os músicos, é aborrecido, para nós é mais um detalhe, embora sejamos mais de preferir música a fluir.

A sessão começa com o habitual emaranhado de fios a pedir socorro, organização que se resolve rapidamente quando estamos perante gente que já a sabe de cor. Resolvem-se dúvidas, “aquela última parte da ‘Júpiter’”, a sobreposição de cordas que se quer em palco pode soar a fácil, mas exige costura. Sobretudo a noção de tempo, quando entra o baixo de João Brandão ou quando sai a guitarra de Cláudia Guerreiro. Eis que chega a primeira pausa. “O melhor dos ensaios são as pausas”, confessa Filho da Mãe entre o primeiro cigarro e o segundo – sim, que nunca se fuma só um num intervalo destes.

Subitamente, uma catástrofe. Rui Carvalho não sabe do seu saco – daqueles cool, de levar ao ombro, com preocupações ambientais, sabe? – e todos os que ocupam o HAUS dão em loucos à procura. Foi encontrado na tasca ao lado, onde fomos beber uma imperial, caso para Filho da Mãe reconsiderar se não era melhor tornar-se um fundamentalista da tasca. A tarde seguiu num fôlego, pelo menos para nós, coisas como perceber que “Brando” não é uma faixa assim tão fácil de tocar em grupo, ou não parar de pedir para Filho da Mãe tocar “Marcha de Pedra”, e aí não se toca, aí é só ele para não dar barafunda. Já era noite quando nos despedimos. Rui Carvalho diz-nos: “Eu disse-te que ia ser uma seca.” Respondemos que seria tão seca como este texto. As promessas são para cumprir.