Elgoibar, pequena localidade da Guipuzcoa. Estive aí há 20 anos em reportagem para a SIC. A polícia tinha partido o braço a um rapaz chamado “revolução”, Iraultza. Acusavam-no de ter lançado um cocktail molotov. Tinha apenas 15 anos, foi detido e espancado numa esquadra. Posteriormente, o tribunal considerou-o inocente. Os polícias apenas o tinham encontrado com uma garrafa de cerveja, numa noite de festa na terra. Apesar disso, foi previamente julgado nas notícias dos jornais.
O seu caso tinha todos os ingredientes para isso: Iraultza era filho de um etarra preso e nunca tinha visto o pai em liberdade. As fotografias do pai estavam na parede da escola, junto às de outras pessoas da terra detidas por pertencerem à organização armada. Ele fora detido como membro do comando Eibar e estava preso há mais de 15 anos. Na altura, durante uma reportagem que fiz para a SIC em que falava com familiares de vítimas da ETA e com familiares de vítimas da violência do Estado, fiquei com uma imagem gravada na memória que simbolizava a situação de uma sociedade há demasiado tempo em conflito.
Estava numa manifestação independentista em Iruñea (Pamplona) e depois do fim do comício davam-se os primeiros incidentes. Dezenas de jovens encapuçados atiravam cocktails molotov aos polícias, que disparavam balas de borracha. Os becos do “casco viejo” da imaginada capital de um Estado basco cheiravam a borracha queimada e gasolina. No meio de um recontro, com encapuçados de um lado e polícias de choque do outro, um casamento com uma noiva de vestido de cauda teimava em passar, como nada pudesse parar a vida no meio da guerra. Uns dias depois falei com Bernardo Atxaga, um dos mais importantes escritores bascos, que me alertou de uma forma irónica para as contradições do conflito basco e dos seus exageros: tudo estava impregnado de demasiada retórica e excesso.
Nas paredes podemos ler “darei a minha vida por Euskadi”, jura de vida que o escritor considerava um pouco empolada. “Nem tanto”, sorria ele. Quando lhe replicava que havia, ainda assim, mais de 800 mortos no tabuleiro e, na altura, quase 700 presos, ele disse-me: “As crianças atiram pedras aos pássaros a brincar, mas os pássaros morrem de verdade.” No País Basco digladiavam-se várias opiniões: aqueles que justificavam a violência e os outros, para quem ela já não tinha sentido. Era uma espécie de presa de um passado que não tinha ajustado devidamente as contas.
LIBERTAÇÃO DE OTEGI
Vinte anos depois voltava a Euskal Herria, literalmente a terra dos que falam basco, para acompanhar a família de Otegi, o líder dos independentistas, e assistir à sua libertação. Estava apalavrada uma entrevista com Arnaldo Otegi. Três dias depois, a 3 de março, assinalavam-se 40 anos do massacre de Vitória-Gazteiz, em que a polícia tinha disparado sobre milhares de operários que saíam de uma igreja, tendo deixado cinco mortos no chão e centenas de feridos. Vivia-se a chamada transição democrática e era ministro o fundador do PP, Fraga Iribarne. Ainda não se tinha feito justiça com todas as vítimas do conflito.
Encontro-me num café no centro da terra, sentado com Josea, cunhado de Otegi. Enquanto estamos a falar, o empregado pergunta-nos se não queremos comer de graça: está quase a fechar e não deita comida fora. Quando acaba o dia de trabalho, oferece-a a clientes e aos mais necessitados. Josea trabalhou numa empresa que produzia ferros, diz-me que conhece Portugal, a zona de São João da Madeira. Combinamos encontrar-nos às seis da manhã para irmos buscar Arnaldo Otegi, com a mulher, o filho e o pai, à cadeia de Logroño, a menos de 200 quilómetros. O dirigente da esquerda abertzale (patriótica em euskera) foi condenado a dez anos de prisão pelo crime de tentar reconstituir um partido político proibido. Vai sair a 1 de março, depois de ter cumprido mais de seis anos e meio de pena. Não é a sua primeira detenção: Arnaldo Otegi começou a militar na ETA Político-Militar e, depois da dissolução desta, aderiu à ETA Militar. Esteve preso pelo rapto de um empresário basco. Depois de cumprir essa pena, começou a participar no Herri Batasuna, chegando a seu dirigente e porta-voz, depois da prisão, em fevereiro de 1997, de toda a direção desse partido basco. Foi preso e posteriormente libertado – Espanha foi condenada neste caso pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Humanos – por ter dito que “o rei era o chefe dos torturadores”.
Foi novamente preso por ter falado na homenagem de um etarra morto, e preso ainda uma outra vez, por ter feito um elogio a Argala, um etarra histórico que pertenceu ao comando que matou o chefe dos serviços secretos da ditadura franquista e sucessor indigitado do caudilho, Carrero Blanco. Resumindo, leva mais de dez anos de cadeia, com 57 anos de idade. O cunhado diz-me que a família planeia tirar umas semanas de férias com ele, mas que acha difícil que seja por muito tempo. “Ele vive para Euskal Herria”, garante-me.
No dia seguinte chegamos à prisão às oito da manhã. Faz um frio gélido. Encontram-se centenas de pessoas à espera que Arnaldo Otegi saia, entre os quais 112 jornalistas acreditados. Falo com David Fernàndez, deputado e dirigente dos independentistas catalães da CUP, que me responde à questão do que significa a libertação de Otegi: “Muitas coisas. A primeira é a liberdade, finalmente está livre do sequestro. Uma pessoa que devia estar em liberdade e que esteve seis anos e meio preso, devia estar livre a exercer os seus direitos políticos.
Mas foi preso por uma obsessão repressiva do Estado espanhol, com um paradoxo gritante: alguém que pretendia fazer uma aposta pela paz, declararam-lhe a guerra.” Quando lhe peço para avaliar as suas perspetivas sobre uma eventual reforma constitucional em Espanha que contente toda a gente e os independentistas, o catalão mostra-se pouco esperançado. “Oxalá houvesse essa evolução democratizadora, mas tenho poucas esperanças de que assim seja, mas uma coisa posso dizer: não vamos pedir permissão para sermos livres, nem perdão por sê-lo”, conclui.
Há 20 anos, a minha reportagem para a SIC começava com a prisão de Tasio Erkizia, um dos mais velhos dirigentes da esquerda abertzale, um antigo padre que foi quase torturado até à morte durante o franquismo: espancado até os rins deixarem de funcionar, esteve clinicamente morto. Acompanhei-o nos últimos dias de trabalho e em família, no bairro popular bilbaíno de Santutxo. Na altura sabia que seria preso mais uma vez. Agora encontro-o à espera de Arnaldo Otegi. Pergunto-lhe se vai mudar alguma coisa e se acredita que algum dia verá o País Basco ser independente. “Eu não o verei, certamente. Mas tenho a certeza de que será. E a libertação de Otegi é um passo nesse sentido.”
Falamos das próximas eleições regionais, em outubro, e da proibição que a autoridades judiciais decretaram durante dez anos aos direitos políticos de Otegi. Tasio diz que é ilegal e que o líder da esquerda abertzale será candidato a lehendakari (presidente do governo regional basco). No meio da multidão vou encontrando mais gente que tinha entrevistado em anteriores reportagens: Fermin Muguruza, um dos mais conhecidos músicos de rock do País Basco, fundador dos Kortatu e dos Negu Gorriak, diz-me que a libertação de Otegi é uma grande notícia e “um sinal para todo o Estado espanhol”, e afirma: “Agora é preciso que libertem os outros 400 presos políticos bascos que continuam a apodrecer nas prisões espanholas.” Sai Otegi da cadeia, abraça o pai, a mulher e o filho, e a muito custo, devido à pressão da multidão, consegue fazer a centena e meia de metros até ao palanque improvisado junto à cadeia.
Aí fala em euskera e castelhano para a multidão e os jornalistas: começa por dizer que é um preso político. Que se não fosse um preso político, não estariam aquelas dezenas de jornalistas à espera dele. “Foi um independentista basco e um socialista que entrou na cadeia, é um independentista e um socialista que sai da cadeia.” E sobre a sua suposta candidatura, Otegi diz: “Já sei que vai haver muita polémica, mas posso garantir que o melhor lehendakari é o povo”, assim como quem diz que depende desse mesmo povo que ele se candidate.
Novo discurso está previsto para o Ongi Etorri (as boas-vindas em basco) na terra do libertado, Elgoibar.
“NÃO VALERÁ A PENA VIVER”
Centenas de presos bascos fazem com que as suas libertações tenham uma espécie de liturgia há muito coreografada. Tocam as txalapartas, instrumento usado anteriormente para comunicar entre montanhas e vales, há uma dança de saudação acompanhada por uma melodia, o preso retira a sua imagem dos cartazes com os detidos da terra e há discursos. O nacionalismo radical basco reivindica-se de uma leitura das tradições. Uma reação moderna, mas que lê um passado mítico.
Não é por acaso que Otegi diz no filme “La Pelota Vasca”, realizado por Julio Medem: “No dia em que em Leketio ou em Zubieta se coma em hamburguerias, se oiça música rock americana e toda a gente vista roupa americana, e deixe de falar a sua língua para falar o inglês, e todo as pessoas, em vez de estarem a contemplar os montes, estejam nas redes sociais, na internet, para nós esse mundo será tão aborrecido que não valerá a pena viver.” Perante milhares de pessoas que enchem completamente a praça principal de Elgoibar mais as ruas adjacentes, o líder dos independentistas vai fazer um discurso estudado em que presta homenagem às vítimas, aos presos e aos históricos independentistas, ao mesmo tempo que faz uma autocrítica: há muito tempo que a esquerda abertzale devia ter abandonado a luta armada, porque ela já não era compreendida pela maioria da sociedade. Otegi sabe que o seu campo político tem problemas: o Estado espanhol não está interessado em resolver o problema humano dos presos, encarcerados a centenas de quilómetros do País Basco, nem em resolver de uma forma política, e por referendo, o estatuto do território.
E os eleitores independentistas, nas últimas eleições, a 20 de dezembro, mostraram–se desiludidos com o impasse e transferiram quase 100 mil votos para os espanholistas do Podemos, que foram a força mais votada nas três províncias da Comunidade Autonómica Basca.
DEBATE SUBSTITUI ANTERIOR ESTRATÉGIA
No dia seguinte encontro-me com Karmelo Landa, filósofo e professor de Jornalismo na Universidade do País Basco. Foi com Jon Idigoras um dos principais dirigentes do Herri Batasuna, tendo sido eurodeputado desta formação. Conversamos sobre a saída de Otegi, o debate de investidura de Pedro Sánchez, que se realiza no mesmo dia, e o debate Abian, documento que a esquerda abertzale discute neste momento. Karmelo reconhece que depois do abandono da luta armada, com a orientação “Euskal Herria de pé”, a esquerda abertzale teve um grande avanço eleitoral que não soube manter.
Colocada à frente da deputação de Guipuzcoa e de grandes câmaras municipais, como Donostia (San Sebastián), não conseguiu ser tão eficiente na gestão do poder. “Houve um grande desgaste perante a nova ofensiva do Estado, não resolvendo nenhuma das questões dos presos e perante um certo falhanço na gestão local. Por isso estamos a fazer um debate político para mudar de estratégia.” Sobre a subida do Podemos, relativiza: “Nós não temos capacidade para influenciar a política a nível de todo o Estado espanhol, somos uma força basca.
O Podemos aparece como uma força nova e, naturalmente, as pessoas tendem a votar útil nas eleições.” Ao contrário do que sucede na Catalunha, Karmelo vê com mais dificuldades um processo de construção nacional e de separação que inclua, de uma forma dinâmica, o Partido Nacionalista Basco, o PNV. Acha que o marco de unidade pode ser feito com outras forças, como o Podemos que, não conseguindo reformar o Estado espanhol, se podem juntar a um processo que dê autodeterminação aos bascos, catalães e galegos.
Acompanhamos o antigo eurodeputado a um programa de debate numa estação de televisão basca, Hamaika Telebista, um canal que emite programação de língua basca na região de Bilbau, Donostia, Vitória-Gazteiz e Iruñea – tudo isto com pouco mais de 20 profissionais. O debate é feito entre Karmelo Landa, um professor universitário, uma candidata a secretária-geral do Podemos basco e um dirigente da Esquerda Unida local. Falam da libertação de Otegi e das suas repercussões mesmo no debate da investidura, com Albert Rivera, do Ciudadanos, a criticar Pablo Iglesias por ter saudado a libertação do líder abertzale, ironizando que deveria ser o novo ministro do Interior de um governo proposto pelo Podemos; e o líder do Podemos a voltar-se contra os socialistas que, como Felipe González, se opuseram a uma coligação de PSOE e Podemos, afirmando que “estes tinham as mãos manchadas de cal viva” (lembrando a implicação do antigo primeiro-ministro espanhol na organização do esquadrão da morte dos GAL).
MASSACRE DE VITÓRIA-GAZTEIZ
No dia 3 de março de 1976, cinco mil operários de Vitória-Gazteiz estavam em greve por aumentos de salários. Espanha vivia a transição democrática. Os operários, quando saiam da Igreja de Zaramaga, foram literalmente fuzilados pela polícia. Nas gravações das forças da ordem pode ouvir-se um polícia a comunicar com outro: “É um massacre.” No chão ficaram cinco mortos e mais de 100 feridos. No dia seguinte, a polícia abate mais duas mulheres em protestos.
O cantor catalão Lluis Llach escreve nessas horas uma música que ressoa até agora: “Campanades a morts fan un crit per la guerra dels tres fills que han perdut les tres campanes negres.” A canção assinala os três primeiros mortos, dois vão falecer horas depois no hospital. A história não está fechada e ainda pesa. Na véspera, um grupo falangista tinha pintado o pequeno monumento aos trabalhadores mortos com as cores da bandeira espanhola e os símbolos da falange. Junto à praça da igreja vão-se sucedendo homenagens em sessão contínua, desde as dez horas da manhã até às 13. As primeiras, das autoridades municipais; as segundas, dos sindicatos estatais; as terceiras, do sindicato independentista; e a quarta, da coligação eleitoral Bildu, que junta o EA com a esquerda abertzale. Depois dos vários discursos, aproveito para visitar um antigo bairro operário que foi cupado por jovens.
O bairro de Errekaleor foi construído, por ordem de Franco, nos arredores de Vitória-Gazteiz, nos anos 50. “A ideia de o construir fora da cidade foi para não contagiar os locais com as ideias de pessoas que vinham de outras regiões de Espanha, entre as quais havia comunistas e anarquistas”, explica Carlos, um dos elementos do coletivo de uma centena de jovens que ocupa o bairro. “Os franquistas só mandaram construir as casas, de modo que todas as infraestruturas sociais – cantina, cinema, salas coletivas – foram feitas pelos próprios operários.” Passamos junto à casa de Romualdo Chaparro, um dos trabalhadores assassinados há 40 anos – na altura tinha apenas 19. Nas paredes exteriores da casa pode-se ver a cara dele e do pai e a inscrição: “Tal pai, tal filho.” Foi o pai de Romualdo que não se conformou com a morte do filho e criou a Associação das Vítimas do 3 de Março. O bairro foi-se esvaziando devido a uma política imobiliária que deixou milhares de casas vazias na cidade.
Os jovens ocuparam-no e a polícia já os tentou despejar várias vezes. Contaram com a solidariedade de centenas de pessoas do País Basco e do resto de Espanha, e resistiram. Funcionam por coletivos e em plenário. Construíram uma padaria, horta coletiva, biblioteca. Neste momento preparam a manifestação dos 40 anos do 3 de março, que decorrerá no centro da cidade ao fim da tarde. Os jovens ocupantes querem reivindicar o uso de milhares de casas devolutas existentes em Vitória-Gazteiz e estabelecer uma forma de vida alternativa em que os problemas sociais são resolvidos em conjunto.
JUVENTUDE BASCA
Vou ao “casco viejo” de Vitória-Gazteiz, marquei um encontro com jovens numa Herrico Taberna. As Herricos são sedes dos independentistas que têm uma zona de bar e convívio e outra zona política. É uma tradição do País Basco: os partidos políticos fazem locais que são fundamentalmente locais de convívio, para além de políticos. Marquei uma conversa com uma pessoa da direção da organização de jovens independentistas Ernai, Izaskun Goienetxea. Nesse mesmo dia em que falámos fora presa uma jovem que tinha estado na organização de um corte de estradas, por causa da ilegalização da anterior organização de juventude, Segi.
Todas as organizações que antecederam a Ernai foram ilegalizadas, e os seus militantes e dirigentes presos. As cadeias estão cheias de ex-dirigentes da Jarrai, Haika e Segi. A dirigente da Ernai – “desperto e atento” em basco – justifica a mudança: “A Segi tinha má fama em grande parte da sociedade, a sua criminalização por parte do Estado tinha resultado. Por um lado, poucos jovens estavam disponíveis para integrar uma organização que podia significar longas penas de prisão e, por outro, cada vez que um dos nossos era preso, parte da sociedade basca não se opunha e pensava ‘alguma coisa fez para ser preso’, isso em consequência da estratégia de confrontação com o Estado espanhol.” Sobre a libertação de Otegi, Izaskun tem sentimentos desencontrados.
Alegra-se que tenha sido libertado, mas acha que há demasiada fulanização: “Devia falar–se de todos os outros 400 presos que continuam longe de ver a liberdade.” Agrada-lhe a capacidade do líder da esquerda abertzale, mas pensa que os independentistas perderam força. O fim da luta armada não foi compensado com o que era habitual nos independentistas: a capacidade de luta de massas e a presença em todos os pontos da sociedade basca.
À porta da casa da juventude estão uns 500 jovens, quase todos vestidos de preto. Perante uma forte presença da polícia de choque, chegamos à Praça da Virgem Branca, onde já estão milhares de pessoas para a manifestação. Um jovem diz-me: “O ano passado foi queimado um banco, por isso é que a polícia está em toda a cidade.”
No final da manifestação arranco para Elorrio, uma pequena localidade que vai receber um preso da ETA por volta da meia-noite. A acusação pedia 35 anos de cadeia, mas o juiz considerou não haver provas suficientes para o incriminar. Vinha de uma cadeia francesa. Estava há dois meses detido em Espanha, era acusado de roubar um carro para uma ação, com arma de fogo. Na terra, cerca de 400 pessoas esperavam-no com bandeiras e foguetes. A câmara é da esquerda abertzale. A coreografia dos atos sucedia-se como em todas as receções. Acabamos na Herrico Taberna, onde ele retirou a sua fotografia do painel dos presos da terra. A Herrico de Elorrio é um prédio inteiro. O responsável diz-me que está em risco de fechar.
O Estado espanhol processou as quase 200 Herrico por suposto financiamento da ETA e a sentença já foi confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça, estando à espera de execução. Ion Letona considera a sentença mera perseguição política. “Estivemos até ao mês passado a pagar ao banco os 600 mil euros que gastamos com a Herrico, onde é que a gente tinha dinheiro para dar à ETA?” Letona afirma que, como no célebre poema de Gabriel Aresti, a população tem de defender a sua casa. Recentemente, a esquerda abertzale adotou uma estratégia de resistência pacífica a que chamam “Libre”. Se alguém vai ser preso, não foge. A população junta-se ao detido para tentar impedir pacificamente a sua prisão.
Na conversa participa um músico, Gaizka Jareño, que esteve três anos preso. Integrante da banda Iheskide, foi detido por “pertencer a bando armado”. “Acordei uma manhã com uma data de metralhadoras.” Diz-me que a prisão não foi dura, dura foi a detenção e as horas que se seguiram. “Parece que cais num buraco negro. Não sabes o que te vai acontecer. Quando cheguei à prisão e ao coletivo de presos bascos, descansei. Aí resistíamos juntos como uma pinha. Conheci gente que estava há 20 anos presa, mas que continuava a acordar com um sorriso.” A banda continuou com ele preso como forma de resistência. Mudaram o nome de “ponto de fuga” para uma designação alusiva à sua detenção: “o camarada”.
CLAQUE REPRIMIDA
Apesar do fim da luta armada e de a ETA ter declarado o abandono unilateral e permanente das armas, as detenções continuam a suceder-se. Recentemente, mais de 20 jovens de uma claque de futebol foram presos, sendo acusados de pertencer a um grupo de criminosos. “De repente, o meu carro foi cercado por várias viaturas da polícia. Quando me levaram preso, disseram-me que era por ‘pertencer a bando armado’. Eu fiquei verde. O homem disse que era o hábito, mas que de facto nos prendiam por pertencermos a um grupo de criminosos”, diz um dos elementos da claque do Ossassuna, os Indagorri. “Quando eu estava preso na carrinha, um polícia explicou-me que, com o fim da ETA, deixaram de ter trabalho e precisavam de continuar a manter os independentistas sob mira.” No caso do Indagorri, a acusação é que um grupo dentre eles prepararia agressões. “Chegaram a dizer-me que só não as fizemos porque a polícia não deixou.
Somos acusados de uma coisa que não fizemos”, diz um dos acusados, que não quer ser identificado. Para ele, a questão é clara: o que incomoda as autoridades é o seu posicionamento político. “Querem impedir-nos de termos liberdade de expressão. No outro dia quiseram multar-nos em 60 mil euros por termos uma bandeira navarra.” Autoridades desportivas que os Indagorri dizem estar ligadas à extrema-direita e a polícia pretendem criminalizar a claque. “Aquilo que está a ser tentado nos estádios, em termos de repressão, será brevemente usado nas ruas da cidade se nós não soubermos opor-nos”, garante.
No pavilhão de Anoeta, em Donostia, Otegi discursa perante 15 mil apoiantes e afirma que, se Espanha atacar a Catalunha, os bascos defenderão os catalães. As armas calaram-se, mas tudo parece estar em ebulição. Ninguém conseguirá prever os próximos anos.