Avante! 32 páginas feitas a foice e a martelo

Avante! 32 páginas feitas a foice e a martelo


O PCP prepara-se para festejar 95 anos e o i foi conhecer uma das máquinas que faz mexer o partido mais antigo do país. Na redação do “Avante!” há jornalistas, chefes de redação, fotógrafos, computadores e impressoras, como em todos os outros jornais. A diferença? “Mais camaradagem”


É dia de fecho no “Avante!”. A três horas de estar na gráfica, é hora de ultimar pormenores. Podia imaginar-se a azáfama e as vozes em tom alto comuns das redações em horas de stresse. Mas não aqui. No primeiro andar da sede nacional do PCP, o ambiente descontraído dá tempo para um ou outro telefonema pessoal, para combinar as horas a que descem para almoçar e para fumar cigarros que quase se acendem uns nos outros. “Trabalhamos na base da responsabilidade”, garante Hugo Janeiro, “e até agora tem funcionado.” Sem sair da secretária, apenas abre a janela para que a nuvem que lhe sai da boca não atrapalhe quem não fuma.

Hugo divide a sala com quatro camaradas e centenas de folhas de jornal. Na maior das salas da redação, que mantém a divisão por secções típica do jornalismo de outros tempos – e bem longe do que de bom e mau traz um open space – o papel está por todo o lado. Exemplares do “Avante!” empilhados e ordenados por data, jornais do dia, estantes forradas a dicionários e folhas A4 à espera de serem levadas para a impressora.

Sem um filtro esclarecedor, esta seria uma redação semelhante a todas as outras. Ruído de um teclar feroz, telefones a tocar, TSF a servir de música de fundo, caos nas secretárias e uma dança de cadeiras de quem tem pouco tempo para enviar 32 páginas para a gráfica. Estaria tudo normal no reino do jornalismo, não fossem alguns apontamentos que não se encontram, arriscamos mesmo dizer, em mais lado nenhum. Nas paredes, são muitos os desenhos de filhos de jornalistas que dividem espaço com as ilustrações que Cunhal fez na prisão. Nas estantes, a Grande Enciclopédia Luso-Brasileira forma o conhecido bloco preto, vermelho e dourado, mesmo ao lado dos livros de Manuel Tiago. Nas mesas, as folhas soltas ganham algum tipo de organização assim que ficam prensadas sob um pisa-papéis em forma de busto de Lenine. Perto da janela está pendurado um calendário que, apesar de ser de 2003, se mantém exposto num outubro ilustrado por uma fotografia de Che Guevara.

Quase que a contrariar a paragem no tempo a que nos levou aquela folha de calendário, Domingos Mealha interrompe para contar as memórias de quem faz da redação casa desde 1986. “Sabia que o ‘Avante!’ foi o primeiro semanário português a ter internet?” O ar orgulhoso faz com que o recuo tecnológico chegue até ao dia em que chegou à redação o primeiro computador. “Foi o meu pai que me ofereceu, custou 140 contos. Trouxe-o logo para aqui”, conta ao i enquanto, por gestos, pousa um computador imaginário na mesa à sua frente. O sotaque algarvio resiste aos muitos anos a viver em Lisboa e, ainda mais inesperadamente, aos anos que viveu em Moscovo, a estudar e a trabalhar já como jornalista. Trazer da Rússia uma língua que poucos falam pode não dar jeito no dia-a-dia, mas já o safou em algumas reportagens. “Sou sempre destacado para falar com a delegação russa que vem à Festa do Avante!”, conta, “e há sempre quem me pergunte: ‘Ó Domingos, o que é que diz aqui neste cartaz?’”

Gerações de camaradas Manuel Rodrigues é o único com gabinete próprio, mordomias de quem dirige “a verdadeira máquina do partido”. Estava ainda a gozar os primeiros tempos de reforma antecipada quando, há dois anos, surgiu o convite para assumir o cargo de diretor de um jornal do qual já era leitor desde que se lembra. “É uma vida bem diferente da dos meus tempos de professor de Filosofia”, garante, “mas é muito desafiante.” Com uma pilha de diários em cima da mesa, folheia-os rapidamente antes de concluir que “basta uma vista de olhos” para ver que o “Avante!” é diferente. “A imprensa, hoje, é controlada por grandes grupos económicos e isso compromete a imparcialidade dos jornalistas”, refere, com a segurança de quem leva em mãos um jornal que sobrevive sem publicidade. Sem revelar números de tiragem, enche a boca para dizer “milhares”, principalmente em edições especiais como a da semana passada, que assinala os 95 anos do Partido Comunista Português.

Num trabalho que acaba por se tornar rotina, são exatamente estas edições especiais que ficam na memória de quem as faz. “Nunca vou esquecer a semana da morte do Cunhal”, conta Gustavo Carneiro, ao recordar uma edição em que o trabalho e as emoções deixaram de ter fronteira. Já Anabela Fino, que com 64 anos conta com o lugar de jornalista há mais tempo a trabalhar no “Avante!”, não se esquece dos assaltos das brigadas israelitas na Palestina a que assistiu ou da odisseia que foi passar a fronteira para a Jugoslávia. “Ensinei aos meus filhos que ‘no news, good news’”, conta ao i, “o pior é quando eles começam a retribuir na mesma moeda”, brinca.

O corpo franzino mantém-se desde 74, quando aos 22 anos começou a trabalhar na redação. Apesar de não se lembrar de barreiras inultrapassáveis, admite que “ser e parecer muito nova, ser mulher, ser comunista e ser jornalista não era a conjugação perfeita em algumas situações”.

O mesmo corpo franzino e os 30 anos com ar de 20 e poucos também nunca foram entrave para o trabalho de Inês Seixas. “Pelo contrário, ser pequenina até faz com que os outros fotógrafos me deem lugar na fila da frente”, conta. Com dez anos de trabalho, divide-se entre a fotografia e a paginação, ao ponto de já não saber o que mais gosta de fazer. Certezas mesmo, só sobre o lugar onde quer passar os próximos anos profissionais. “Já tive propostas de outros jornais, mas nunca aceitei.” Perante um inevitável ar de espanto, Inês encolhe os ombros e responde com o ar de quem debita uma frase óbvia: “Porquê? Porque antes de ser fotógrafa, sou comunista.”