São várias as classificações possíveis de regimes políticos e de sistemas de governo. Uns fundam-se mais na concentração de poderes, outros na organização do Estado e outros na própria finalidade intrínseca ao exercício do poder. Mas o que importa nesta sede é apresentar o que mais comummente é adotado pela doutrina. E nesse sentido regime político é um termo utilizado na ciência política e no direito público para definir “o conjunto das instituições políticas que regulam a luta pelo poder e o seu exercício” . Isto apesar de durante muito tempo se ter observado a classificação aristotélica, que distinguia entre monarquia (“O governo de um só”), aristocracia (“O governo de alguns”) e democracia (“O governo de todos”). Segundo esta classificação de Aristóteles, estes regimes poderiam degenerar em tirania, oligarquia e demagogia, conforme cada uma das respectivas catalogações. Também Maquiavel, em “O Príncipe”, autor de referência do período renascentista e mais tarde Montesquieu (em “O Espírito das Leis”), estabeleceram uma catalogação distintiva entre a monarquia e a república. Para Montesquieu, a monarquia fundava-se na honra, o despotismo no medo e a república na virtude. Para Paulo Ferreira da Cunha o regime político é “o timbre político, de respiração política de uma sociedade…”. Bem diferente do sistema político que para Paolo Biscaretti di Ruffia consiste na “recíproca posição jurídico constitucional dos diversos órgãos constitucionais de soberania…”. Ou seja, falar-se de regime político não é o mesmo que de sistema político, ou de governo. Como Manuel García-Pelayo refere “o sistema de governo aparece como o resultado de um processo lógico racional para assegurar a vigência da liberdade…”. “O pior inimigo da liberdade diz Montesquieu, “é o poder…”, já que “é uma experiência eterna que todo o homem que tem poder tende ao seu abuso…”. Mas como o poder é necessário, só existe um meio para garantir a liberdade, a saber: “Encontrar uma disposição de coisas…” em que “o poder detenha o poder…” e tal “só se pode alcançar mediante a sua divisão…” segundo Manuel García-Pelayo.
2. Os sistemas de governo democrático, baseados no pluralismo político e orgânica e funcionalmente, no princípio da separação de poderes, podem ser qualificados como presidencialistas, quando os poderes executivo e legislativo estão separados, parlamentares, quando o executivo depende exclusivamente de câmaras representativas e o Chefe de Estado não é eleito por sufrágio direto e universal, não tem poderes constitucionais efetivos no domínio da posse e fiscalização dos governos, híbridos ou mistos de que o semi-presidencialismo é a principal expressão jurídico-constitucional e de tipo diretorial, como sucede com a Suíça. O sistemas de governo e as suas diversas catalogações têm em conta de entre múltiplos critérios, cinco relevantes: se existe eleição direta do chefe de Estado ou não, qual o grau de responsabilidade do governo perante os demais órgãos de soberania, se existe a competência para a dissolução do parlamento por decisão autónoma do chefe de Estado, no âmbito das clássicas funções de soberania a que órgãos de soberania está acometida a competência (ou não) de conferir autonomia ao governo e por último se o Chefe de Estado tem ou não poderes de direção política no exercício da função de soberania mais nobre, que é a função política. No que diz respeito ao sistema presidencial e ao sistema de tipo diretorial, julgo que não fará sentido esculpir a sua estruturação e qualificação. O mesmo não direi em relação ao sistema híbrido ou misto, na sua tipologia mais vulgar conhecida e qualificada como semi- presidencialista e também em relação ao sistema parlamentar.
3. Maurice Duverger entende que se chama parlamentar a um sistema no qual o governo está dividido em dois elementos, um dos quais – “O Gabinete, no sentido mais estrito da palavra, é politicamente responsável perante o Parlamento e tem o direito de o dissolver…”. George Burdeau estende o parlamentarismo “à igualdade entre o executivo e o legislativo, à colaboração entre os dois poderes e à existência de meios de ação recíproca de cada poder no outro…”.
Por seu lado Reinhold Zippelius afirma “que o que há mais de característico no sistema parlamentar, porém, é a representatividade do governo perante o Parlamento, bem como o direito que este tem de dissolver ou provocar a dissolução daquele…”. Na doutrina nacional, a esmagadora maioria dos autores qualifica o sistema português como sendo semi-presidencialista, com diversos a assumirem-no como semi-presidencialista mitigado, devido à sua elasticidade e tempero político de circunstâncias derivadas da pulverização parlamentar. Não sendo despiciendo que nos sistemas parlamentares existam distinções assentes em critérios de carácter político de influência endógena e exógena à circunstância política dos resultados eleitorais e dos protagonistas dos órgãos de soberania, Assembleia da República e Governo. Em particular o sistema parlamentar de gabinete, o sistema parlamentar de Assembleia e o sistema parlamentar racionalizado. Das três catalogações, se no caso português tivéssemos um sistema parlamentar, aquela que mais se aproximaria da atual realidade portuguesa, seria a variante de sistema parlamentar de Assembleia, com o governo a depender do parlamento, sendo um executivo potencialmente muito frágil e minoritário, com a possibilidade de a atividade legislativa contrariar a regular atividade governativa. Como refere Reinhold Zippelius “o parlamentarismo nasceu de um conflito entre o governo e o parlamento, se bem que depois tenha evoluído…”. Um dos elementos estruturantes do sistema parlamentar é o seu sistema eleitoral. Que é essencialmente um sistema eleitoral assente no método eleitoral de apuramento de maiorias simples e na configuração de círculos eleitorais, em circunscrições eleitorais de base uninominal. No equilíbrio de poderes constitucionais, entre os órgãos de soberania, Presidente da República, Assembleia da República e governo, existem poderes próprios de cada um e cooperação e interdependência em coerência, atestando que o sistema de governo português não é parlamentar, devendo atentar-se a: 1) O Presidente da República é eleito por sufrágio universal; 2) Na existência de dupla responsabilização política do governo e do primeiro-ministro; 3) Na existência de um conjunto significativo de poderes do Presidente da República; 4) Na possibilidade de dissolução do Parlamento por decisão e iniciativa autónoma do Presidente da República; 5) Para além de uma panóplia de poderes acometidos ao Presidente da República em várias matérias da política interna e até da política externa. Aliás, a doutrina assume várias razões para a existência de sistemas semi presidencialistas, de onde se destaca, a necessidade de moderar o poder do parlamento e assegurar a governabilidade. Desde a aprovação da Constituição da República de 1976 e após sete revisões constitucionais, o acervo do essencial dos poderes constitucionais do Presidente da República mantém-se (com exceção das alterações ocorridas com a 1ª revisão constitucional em 1982). A este propósito, Marcelo Rebelo de Sousa, refere “que o sistema de governo português conheceu um pendor presidencial na letra da versão originária da Constituição de 1976, pendor esse esbatido na revisão de 1982. Desde, então, em tese, encontramo-nos perante um semi-presidencialismo com equilíbrio entre as componentes presidencial e parlamentar…”. Julgo estarmos perante a evidência de que quando se tenta afirmar que o nosso sistema de governo é parlamentar, que tal se trata de um manifesto equívoco e que se trata, antes sim, de uma tentativa decorrente de conveniências político-partidárias (e até pessoais) de protagonistas da vida política nacional, com recurso ao generalismo protagonizando aquilo a que poderemos qualificar como uma espécie de parlamentarismo de conveniência.
4. Esta tentativa de colocar em causa, por via da retórica argumentativa política e do confronto político partidário, a qualificação do sistema de Governo português tem várias consequências. Muito mais negativas do que positivas. Desde logo ao nível das instituições políticas, da prática política constitucional e até ao nível do próprio funcionamento do sistema. Como reagir a esta situação? Esperar para ver no que dá? Fazer de conta que é passageiro? Acreditar que a natureza e a prática do regime se encarregarão de no curto e médio prazo de atestar o embuste? Confiar que o semi-presidencialismo se encarregará de confirmar que é o melhor sistema de governo para Portugal? Consolidando a sua elasticidade e o respeito pela sua genética? Ou por outro lado exigir, aos que dizem que vivemos num sistema parlamentar e que isso é o melhor para o país, que sejam, consequentes e coerentes. Como?
5. Desde logo disponibilizando-se para uma revisão constitucional, propondo mudanças constitucionais que alterem tudo o que tem que ver com o sistema vigente semi-presidencial, para passar a assumir a sua nova condição de sistema parlamentar. Apresentando em simultâneo, várias propostas de alteração com impacto direto em alguns elementos estruturantes do sistema político. Por exemplo, começando pela alteração à lei eleitoral para a Assembleia da República. Introduzindo em Portugal, uma trave mestra dos sistemas parlamentares, que é o método de apuramento eleitoral por via da maioria simples (em detrimento do método proporcional ou de Hondt) e criando os círculos uninominais de eleição. Em coerência os que defendem e operaram a mistificação à volta do nosso sistema de governo é o que deverão fazer. Uma revisão constitucional e a consequente prática de vários atos normativos conducentes à alteração do sistema de governo. Ou será que não têm coragem? E do que falam é só por conveniência? E que não lhes sendo oportuno adaptá-lo ao modelo parlamentar, lhes irá criar mais problemas do que soluções, sobretudo em partidos políticos que na vigência de um sistema de governo parlamentar, com um sistema eleitoral de base de eleição uninominal e de apuramento por maioria simples, correriam (correm) o risco de deixarem de ser úteis para a novel maioria governativa? Partidos esses que têm tido no sistema semipresidencial, o seu “sistema” de eleição garantida. Este debate ainda mal começou. E terá de ser feito. Não só politicamente. Mas também e sobretudo constitucionalmente, juridicamente e de forma comparada. A bem da qualidade da democracia e da confiança nas instituições, de quem vota. Para ter conhecimento político e jurídico de todas as opções possíveis. Daí que a conveniência se dê mal com a coerência. Percebe-se porquê, não é?