“As pessoas estão a chorar agora por aquilo que já estava feito”, diz José Filipe Rebelo Pinto. O empresário lisboeta fala com o conhecimento de quem chegou ao Cais do Sodré antes de quase todos, de quem esteve entre os primeiros a tentar fazer o cool chegar àquela parte da cidade, tão a jeito no sopé do Bairro Alto e já meio a caminho do Lux, um red light district decadente com os seus bares bas-fond, como se calhar deviam ter continuado, e que, como sempre e em tudo, umas vezes souberam reabilitar e outras não. “A destruição do Cais do Sodré começou também quando os promotores da noite o utilizaram para o transformar numa coisa que não tinha nada a ver”, diz ele que em 2004 pôs as noites de quinta-feira do Jamaica nas bocas de Lisboa, criou os afters do Europa e programou o desaparecido Texas, onde hoje temos o Musicbox.
“Não vale a pena pegar num sítio que é bas-fond e querer transformá-lo no sítio do gin da moda. Acho que é preciso as pessoas olharem à sua volta, verem onde estão e integrarem-se. É quase criminoso mandar-se abaixo uma fachada com anos de história.” Não será só uma fachada mas três bares, ou pelo menos dois dos mais emblemáticos bares do Cais do Sodré, que vão desaparecer depois das obras que, ao que parece, vão avançar no prédio em que se situam o Jamaica, o Tokyo e o Europa, para a sua transformação num hotel, pela mão de dois sócios franceses que compraram ainda um outro edifício na mesma zona, onde já se iniciaram as obras para a transformação em hotel.
Segundo os sócios das discotecas, foi-lhes dada pelos proprietários do edifício ordem para deixarem os espaços que têm alugados até 14 de abril, para que possam ter início as obras de reabilitação de todo o prédio, em avançado estado de deterioração. O advogado dos proprietários originais, Diogo Tavares de Carvalho, não confirma nem o teor do projeto nem que haja uma data para as casas fecharem portas. Mas admite que terão de fechar antes do início das obras e que, depois delas, só haverá lugar para um dos três, no lugar do atual Jamaica. Tavares de Carvalho sublinha que o mais importante nesta fase é “a urgência da intervenção” num prédio pombalino que está já muito degradado. “A nossa preocupação também é essa. “Como as baixas civis nas guerras, o fecho das discotecas, temporário ou não, é um dano colateral.”
Um problema antigo A história do desentendimento entre os proprietários do edifício e os donos dos bares não é de agora – já há cinco anos este edifício tinha dado que falar, quando os bares tiveram de fechar para obras realizadas coercivamente pela câmara, depois de parte do segundo andar do prédio ter ruído. A história repete-se agora mas, ao que parece, desta feita poderá vir mesmo a ser de vez. Tentando impedi-lo foi ontem lançada uma petição dirigida à Câmara de Lisboa com o título “Jamaica, Tokyo e Europa: Reabilitação Urbana sim, à custa de Espaços Históricos NÃO”, que reunia ao início da noite perto de 2 mil assinaturas.
A um email com várias perguntas sobre o posicionamento da Câmara de Lisboa sobre o encerramento dos três espaços para dar lugar a um hotel depois de toda a aposta na zona à volta da Rua Nova do Carvalho (agora conhecida como Rua Cor de Rosa, que, aliás, o “New York Times” destacou recentemente como uma das 12 ruas mais interessantes da Europa) e em que fase está o licenciamento desta obra, a autarquia limitou-se a responder apenas que “a Câmara Municipal de Lisboa está em contacto com os intervenientes no sentido de ser encontrada uma solução”.
Segundo o i apurou, o projeto de reabilitação do edifício, que já deu entrada na câmara e está a aguardar aprovação na especialidade, prevê que seja transformado justamente num hotel. Fernando Pereira, sócio do Tokyo e do Jamaica, confirma que o projeto prevê a manutenção de um espaço de discoteca, correspondente à área do atual Jamaica. “A ideia é fazerem um hotel que vai ter como tema a música, daí quererem manter um dos espaços a funcionar”, diz ao i, adiantanto que essa foi uma ideia dos sócios franceses que vão reabilitar o edifício e que é com eles que tem estado em contacto. Mas a luta dos proprietários é para que se mantenham as três casas e é nesse sentido que estão a ser mantidos os diálogos com a autarquia. “A câmara tem interesse em que seja reabilitado o edifício mas também em manter os espaços.”
A amálgama do tanto faz É mesmo disso que fala Catarina Portas, que atende o telefone do estrangeiro, indignadíssima com um problema que não é de agora. “Estou desde há um ano a tentar e a gritar, a dizer isto: eu acho que nos próximos dois anos metade dos sítios que conhecemos, entre lojas antigas e estabelecimentos deste tipo, tudo o que tenha mais de 10, 20, 30 anos, toda a identidade histórica de Lisboa, vai desaparecer. Acho fantástico que esteja toda a gente muito preocupada agora com estes bares do Cais do Sodré, eu também estou, mas é preciso dizer que este ano fecharam e estão ameaçadas dezenas de lojas em toda a cidade e infelizmente ninguém se mexeu como até agora”, diz a proprietária das lojas Vida Portuguesa para quem é muito importante que se perceba o que está a acontecer e que, além disso, o presidente da câmara, Fernando Medina, esclareça as suas intenções. “Porque a câmara tem por um lado um programa chamado lojas com história e por outro lado a vereação do urbanismo está a licenciar hotéis e hotéis e hotéis e hotéis sem nunca negociar sequer nem impor que as lojas fiquem”, sublinha, rematando com um recado para aqueles que têm destruído Lisboa em nome do turismo: “Ao fecharem lojas antigas atrás de lojas antigas, restaurantes como o Palmeira ou discotecas como o Jamaica é também o turismo que estamos a pôr em perigo – esse fator importante da economia da cidade. São eles que fazem a identidade e o charme desta cidade. Sem eles, não há diferença nem há vantagem. Seremos iguais a tudo o que é igual, incaraterístico, amálgama, tanto faz.”