Não será seguramente pelos afetos que se recordará Cavaco Silva. Mas se a história for justa para com ele, reconhecerá que foi o político que, nas últimas décadas, mais contribuiu para o progresso e o bem-estar social dos portugueses.
Já não falando da circunstância de ter sido o braço direito económico-financeiro de Sá Carneiro, é relevante recordar hoje, no dia em que deixa a política formal, em que ocupou cargos de primeiro–ministro e Presidente da República, que a ele se devem coisas como o 14.o mês dos pensionistas (posto em causa nos últimos anos), a multiplicação de universidades e politécnicos, a implantação de uma rede hospitalar coerente, a construção de autoestradas úteis (Lisboa-Porto, Lisboa-Algarve e Via do Infante, por exemplo), a Expo e o Alqueva, que mudaram Lisboa e o Alentejo. Com ele reapareceram indústrias estratégicas de que a unidade de Palmela é o expoente máximo, abriram-se rádios e televisões privadas e acabou a imprensa estatizada. Reforçou-se o poder local. Descobriu-se a política do mar. Surgiu a CPLP. Reconstituíram-se laços com Angola, aumentou-se a autonomia da justiça, implantou-se um plano de privatizações – e não de venda a pataco -, liberalizou-se (aí em excesso) o setor bancário, criaram-se condições de progresso para as regiões autónomas e fez-se uma reforma fiscal enorme.
É certo que ao fim de dez anos, quando decidiu retirar-se e candidatar-se sem êxito a Belém, o país estava farto. Não propriamente de Cavaco (prova-o o resultado, mesmo na derrota, contra Sampaio), mas do cavaquismo e de fenómenos de novo-riquismo e tramoias desse período. Tentaram sem êxito misturá-lo com negociatas, mas isso é o mal de todos os invejados. Sobre a família Soares, não foram menores certas insinuações torpes. Cavaco gerou na sociedade pseudotradicional portuguesa um movimento de rejeição que se traduziu no jornal “Independente”, um projeto político através do qual as influências dominantes de sempre voltavam a emergir, precisamente porque Cavaco gerou essa possibilidade com as transformações que operou na sociedade. Sucedeu-lhe no governo António Guterres, uma espécie de contraponto pachola que desertou e deixou o país de tanga, como muito bem disse Durão Barroso, que também deu às de vila-diogo assim que pôde.
Homem austero, tímido e solitário, Cavaco Silva foi na Presidência um exemplo talvez excessivo de rigor institucional. Mas, convenhamos, foram as próprias circunstâncias que a isso obrigaram. No início, até se estranhava a simpatia com que recebeu Sócrates e o apoio óbvio que lhe deu, num claro sinal de equidistância em relação ao seu PSD. No entanto, quando percebeu para onde íamos e, sobretudo, o caráter do ex-primeiro-ministro, Cavaco travou a fundo e alertou para a catástrofe, sem interferir diretamente no executivo. Isso foi, aliás, coisa que nunca fez, mostrando-se sempre disponível a aconselhar, a construir soluções e a amortecer confrontos, propondo pactos e promovendo discretas conciliações a partir de Belém. Sem abdicar de convicções e de as proclamar em qualquer tema que fosse, ajudou a resolver crises políticas sucessivas no meio de um mundo financeiro que desabou à escala nacional e mundial. Quando analisado com algum recuo o seu mandato presidencial, terá de se ter em conta o enquadramento conjuntural próximo do caótico em que foi exercido.
Goste-se ou não de Cavaco Silva como pessoa ou como político, uma coisa é certa: nunca enganou ninguém. Apresentou–se exatamente como o que era e é. Um homem estático, um tanto hirto, mas munido de um raro bom senso político e de um profundo desprezo pela mediação jornalística, da qual se distanciou sempre o mais que pôde, nunca abandonando os seus princípios mesmo que tal lhe custasse popularidade tanto em São Bento como em Belém. E nisso foi coerente, pois, por exemplo, não se prestou a condecorar e a dar palmadas nas costas a quem o hostilizou. Nalguns casos, não lhe ficou bem. Mas não foi cínico nem se vergou à conveniência do politicamente correto para agradar ao pensamento dominante, a bloguistas e a redes sociais. Cada um é como é.
Essa firmeza foi a sua maior debilidade e o seu maior trunfo. Nunca foi querido dos media. Foi o primeiro a perceber isso e não hesitou em afrontá-los quando disse que nunca tinha dúvidas e raramente lia jornais. Cavaco Silva seguiu uma estratégia corajosa e rara. Não quis saber da opinião publicada. Fez o que achava certo e relacionou-se diretamente com o povo, passando por cima de qualquer intermediação. Por isso mesmo, nunca os oráculos perceberam as suas quatro maiorias absolutas. Nunca tinha havido alguém assim e dificilmente haverá outro igual porque, hoje, se não houver boneco para as câmaras, não se passa nada. Outros tempos, outros ventos. É pouco provável que Cavaco Silva volte a falar publicamente de política, salvo por estrito imperativo de consciência. Mas a política falará dele porque o seu papel é incontornável. Aguardemos agora pelas suas novas memórias, que certamente contarão pormenores relevantíssimos e incómodos para alguns.
Jornalista