As empregadas da limpeza é que mandam no teatro. Divas de circunstância, monólogos de aspirador quando já só sobra o porteiro e a luz de presença. Isso e um rato de fantoche com veia de serial killer, ou um telefone imaginário que cai da lua aka teto deste teatro situado algures entre a Via Láctea e o Jardim da Parada.
Se estas primeiras linhas lhe trocaram as voltas culpe Ricardo Neves-Neves. E este, provavelmente, chuta a responsabilidade para Copi. “Em 2012, estava no elenco de ‘A Morte de Danton’, no Teatro Nacional, com encenação do Jorge Silva Melo, e pedi-lhe sugestões de leituras e peças que achasse que eu podia encenar. Ele deu-me vários autores, entre eles o Copi e foi assim uma espécie de amor à primeira vista com esta peça que é doida do início ao fim”, conta o encenador. “A Noite da Dona Luciana”, nova produção do Teatro do Eléctrico, estreia hoje no Teatro do Politécnica, onde fica até 19 de março.
Até porque grande parte do que importa aqui é encontrar o culpado. O autor de uma aparente quadratura criminosa que dita o fim da atriz, do técnico – que Neves-Neves opta por fazer com dois atores, em coro, numa espécie de duplicado coreografado – e do encenador. Em teoria, todos os dados recolhidos apontam para Vicky Mancha Negra, uma striper reformada por acidentes da vida, ex-atriz com relações mal resolvidas, sede de vingança e uma cicatriz à Joker. A questão é que qualquer frase deste texto devia começar com supostamente, com uma incerteza latente ao texto de Copi, que Neves-Neves se apressa a dizer: “É muito díficil de explicar”, antes de acrescentar a tentativa: “Nós somos atores que estamos a fazer uma peça, nessa peça eles também são atores a fazer uma peça e nessa peça também estão a ensaiar uma peça. É um ponto de ironia de Copi, é um autor que se serve do sarcasmo para criticar. Acho que está a fazer uma crítica a esse género de teatro ainda que no final critique a sua própria peça, diz que é perverso só porque sim, que não tem bem uma razão de existir”.
É aquilo a que se costumar chamar de teatro dentro do teatro. Mas que aqui mais parece teatro dentro do teatro dentro do teatro, lençóis infinitos, sobreposições intermináveis que desaguam num labirinto de subversão complexo. Não estamos, no entanto, perante um ensaio de acesso absurdo-intelectual que nos asfixia a interpretação. Tal como o encenador aqui nos confirma: “A peça no papel parece muito mais complicada do que é. Na voz dos atores aquilo ganha uma fluidez muito mais simples e leve, mas no papel há ali uma complexidade aparente, a cena potencia o texto”. Ou seja, bola da culpa para outro lugar, que isto ainda é imprensa, não pode ser vista ao vivo.
“A Noite da Dona Luciana” podia talvez ser um policial nórdico com mortes macabras e as respetivas adaptações norte-americanas, é, no entanto, um espetáculo entre o humor negro, bem latino, onde o enredo sugere este teatro assombrado como arena da morte, numa alusão à tal imagem tipificada que se tem de um teatro, lugar mágico e interminável, com masmorras e candelabros de ouro, meio Hogwarts sem feitiçeiros. “Às vezes levo amigos aos bastidores dos teatros e as pessoas imaginam sempre um mundo gigante, ficam um bocado ‘mas é só isto?’. É a ideia que se tem, então quisemos aumentar os percursos dos atores, pusemo-los só a andar no mesmo sítio para fingir que o teatro é muito maior do que é. E depois é puxar este género de policial cómico e perverso”, explica.
A isto acrescente-se que Copi não conhece o Lux, nem sequer o Parque Mayer, referências locais presentes no texto. Opção de Neves-Neves, que decidiu adoptar os lugares que no original, em 1985 o autor argentino escreveu para Paris. Pense-se ainda que “A Noite da Dona Luciana” já tens seis datas de digressão: “Vamos ter que fazer uma pesquisa prévia de cada sítio para apurar onde é que é a drogaria da zona, vai ser divertido”.Ou isso ou este texto faz parte da peça. Tudo é teatro.
“A Noite da Dona Luciana”, hoje a 24 de março no Teatro da Politécnica. Terça e quarta às 19h; Quinta e sexta às 21h; Sábado ás 16h e 21h. 10€.