“O que acontece a um sonho adiado?”, perguntava-se Langston Hughes, poeta e ativista social norte-americano, no verso que lança um dos seus mais famosos poemas, “Harlem”. “Será que seca/ como uma passa ao sol?/ Ou infeta como uma ferida–/ E depois foge?/ Será que fede como carne podre?/ Ou ganha crosta com açúcar por cima–/ como um doce xaroposo?// Talvez se afunde simplesmente/ como uma carga pesada.// Ou será que explode?”
Foi para que o sonho não mais fosse adiado que um grupo de atores afrodescendentes fundou, em 2009, a Associação Griot. Comecemos por aí, pois o que há num nome, às vezes, mais que uma indicação é um signo, e este inspira-se numa casta hereditária no seio das comunidades da África ocidental, sendo os seus membros os guardiães da ancestral tradição oral daquelas tribos ou povos. Mais que simples artistas, estes contadores de histórias, historiadores de lendas e mitos locais, músicos, cantores e poetas, a quem frequentemente se atribuem poderes sobrenaturais, são membros de influentes dinastias cujo papel é educar e, ao mesmo tempo, entreter, uma cultura que persiste há mais de sete séculos em vários países de África, desde a Mauritânia, mais ao norte, até à Guiné ou ao Níger, mais ao sul. E a palavra que nos chega pela língua francesa deriva, afinal, de uma portuguesa, da palavra “criado”, o servente doméstico que terá fugido para se elevar à condição de educador. A expressão foi adulterada pelo crioulo, libertando-se do peso da serventia para se assenhorear do seu destino.
Dentro da associação viria a nascer uma companhia de atores, o Teatro Griot que, não sendo exclusivista, é constituído maioritariamente por afrodescendentes. Atualmente integram-no quatro negros Daniel Martinho, Giovanni Lourenço, Matamba Joaquim e Zia Soares – e duas brancas – Ana Rosa Mendes e Margarida Bento. Se a distinção marcada pela cor da pele provoca um certo arrepio, é sinal de que uma diferença sempre à vista prefere ser arrumada em silêncio. Não temos de acabar sempre a falar de racismo desde que tenhamos claro que é um problema dos nossos dias, no nosso país, e no meio artístico como em todos os campos da vida social.
Zia Soares, que além de atriz é diretora artística do grupo, não hesita em dizer que “quotidianamente encontra situações de racismo, mas que a habituação normaliza, transforma num código essas situações, que são aceites por todas as partes”. Mas se existe racismo, “e não de um só, mas de ambos os lados”, quando o Teatro Griot atua, esse é apenas um aspeto da vida que tem reflexo em palco. Mas na raiz da construção do projeto está um conjunto de atores negros que sentiram necessidade de criar uma companhia para assumirem liberdade criativa, iniciando um trabalho que lhes permitia expressar artisticamente as suas inquietações. “Depois”, como Zia sublinha, “há um sentido de missão pelo facto de podermos funcionar como espelho para essas comunidades dos bairros periféricos, comunidades maioritariamente africanas relegadas para a periferia. Como podem estas crianças e jovens olhar para os atores do Teatro Griot e pensar nisso também como uma possibilidade de vida?”
As dinâmicas interidentitárias entre o africano e o europeu são assumidas como um elemento-chave nas atividades desta companhia, presentes tanto na escolha dos textos, encenadores e atores como no serviço educativo, nas conferências promovidas em colaboração com a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e nas iniciativas desenvolvidas nos bairros periféricos da Grande Lisboa. Zia adianta ao i que um dos pontos em torno do qual gravita o trabalho do grupo é mesmo “pensar sobre as possibilidades de colocar artisticamente esta identidade emergente, híbrida, do africano e do europeu”. Adianta que em Portugal é ainda muito difícil ter um diálogo sobre esta questão, sobre o passado colonialista português que nos une, sobre o que acontece em consequência desse passado, quem somos hoje e quem podemos ser no futuro. Nós, negros e brancos que partilham a mesma história e coabitam no mesmo sítio – neste caso, Lisboa, que é onde estamos sediados.
Zia Soares tem no sangue e na sua história familiar muito do que foi o próprio tumulto do passado colonial português. Filha de pai timorense que, após unir-se a outros timorenses numa revolta contra as autoridades coloniais, foi preso e, sem qualquer julgamento, desterrado para Angola com cerca de outros 60 homens, levados num vapor chamado Índia que, dois meses depois de sair de Timor, desembarcou em novembro de 1959 no porto do Lobito. Esteve preso ainda dois anos na colónia penal do Bié, período ao fim do qual ele e os outros foram libertados sob a condição de não regressarem mais a casa, ficando sob a vigilância da PIDE. Na “reinvenção da sua vida num continente estranho, sem família nem ninguém”, viria a conhecer a mãe de Zia. Quando começaram as guerras da independência nas colónias portuguesas em África, a família fugiu para Portugal – Zia tinha então dois anos –, com intenção de seguirem depois para Timor. Mas quando cá chegaram souberam que a vida na terra natal do pai se vinha deteriorando, estando em convulsão, com a desocupação a deixar aquele território à mercê da Indonésia. O sonho do regresso às origens nunca mais via a situação ideal para regressar e, esperando, a família acabaria mesmo por ficar em Portugal.
Fundada por Ângelo Torres, Daniel Martinho, Matamba Joaquim, Miguel Sermão – alguns dos atores negros com maior reconhecimento do público português e um grupo de amigos que, na sequência da grande procura de atores negros para a série da TVI “Equador”, sentiram que estava na altura de haver em Portugal uma associação deste género –, a entrada de Zia, em 2010, coincidiu com o momento em que a Griot se assumiu como uma companhia de teatro. A diretora artística do grupo lembra que, se a vida está difícil para os atores no nosso país, e para os grupos de teatro, as dificuldades são ainda maiores para os atores negros. Por outro lado, Zia entende que levar a palco uma peça com um elenco com vários atores negros marca uma diferença em relação às restantes companhias, onde ainda é raro encontrar-se um. É uma novidade e, só por isso, já reclama alguma atenção. De resto, a atriz lembra que há poucos artistas negros com expressão em Portugal, tendo em conta a enorme comunidade negra que vive no país. “Os artistas negros estão agora a aperceber-se de que é possível, que há este caminho também. Há dez anos, uma criança negra em Portugal não tinha no seu horizonte tornar–se ator ou encenador, iluminador, cenógrafo. Hoje, isso começa a mudar. Há uma novela na televisão [“A Única Mulher”, TVI]. Está finalmente a dar-se um passo nesse sentido.”
Em 2014, a companhia foi responsável por levar à cena a peça que liderava a lista das dez melhores do ano escolhidas pelo jornal “Público”. Zia conta que na véspera de essa lista ter sido divulgada, o grupo que tinha a peça em cena teve de cancelar uma atuação porque só apareceram duas pessoas para assistir. A atriz diz que as duas pessoas foram compreensivas e amáveis, aceitaram voltar no dia a seguir e ocuparam lugares numa plateia que então estava esgotada e assim continuou até a peça sair de cena. A peça chama-se “As Confissões Verdadeiras de um Terrorista Albino”, com encenação de Rogério de Carvalho. Trata-se de uma adaptação a partir do livro de memórias com o mesmo título do poeta sul-africano Breyten Breytenbach. Publicado em 1985, é um relato dos sete anos que passou encarcerado nas prisões sul-africanas após ser acusado de conspiração – uma denúncia que é feita através de uma “excruciante narrativa da sua viagem através da máquina infernal do sistema prisional sul-africano, com todo o seu cortejo de horrores, histórias inacreditáveis, figuras humanas” e, ao mesmo tempo, “uma reflexão do prisioneiro isolado de todas as suas ligações com o mundo que acaba por duvidar da realidade daquilo que vive”. Esta peça é reposta nos dias 13 e 14 deste mês no sábado às 21h30 e no domingo às 16h no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada.
Também em janeiro o grupo passou a ter a sua sede integrada no Polo Cultural Gaivotas, um espaço novo e vibrante, bem no centro de Lisboa, que foi recentemente inaugurado na antiga escola básica da Rua das Gaivotas. Promete dar mais vida à cidade e dispõe de salas de ensaio para música, teatro e dança, e até de apartamentos para artistas não residentes em Lisboa. Zia Soares mostra-se otimista quanto ao futuro e sente na própria relação com o público que alguma coisa está a mudar. A temporada da última criação da companhia, o musical “Ruínas” – peça aclamada da norte-americana Lynn Nottage, premiada com o Pulitzer em 2009, que parte das histórias reais de refugiadas congolesas –, com encenação de António Pires, esteve no S. Luiz entre os dias 6 e 16 de janeiro e no Teatro do Bairro, de 20 a 24, sempre com a sala cheia. Um espetáculo com 13 artistas negros em cena, e a atriz e diretora artística do grupo viu o reflexo dessa evolução não só na quantidade de público mas na sua composição. Antes “tínhamos dois, três ou quatro espetadores negros numa sala com 70 lugares, agora, finalmente, pode dizer-se que as cores se misturam.”