Os Doze pares de França. A geografia do desengano

Os Doze pares de França. A geografia do desengano


O primeiro pedaço da Ocupação Minhota no D. Maria II – a decorrer até ao fim de fevereiro – estreia-se amanhã. Um auto popular com encenação de João Pedro Vaz, diretor artístico das Comédias do Minho.


Há vezes em que as cadeiras são cavalos. Em que as espadas são cabos de vassouras, em que o pano vermelho serve para dividir terras, em que diferentes figurinos ilustram exércitos distintos. De um lado os cristãos liderados pelos Imperador Carlos Magno (Rui Mendonça), do outro os mouros de Almirante Balão (João Grosso), líderes de um duelo que é maior que este palco. Opõem-se também os verdes territórios do Minho perante a calçada portuguesa do Rossio, Comédias do Minho vs Teatro Nacional D. Maria II, periferia e a inimiga capital. Reflexo  – e proposta de reflexão – de uma migração interna que urgiu de um convite de Tiago Rodrigues a João Pedro Vaz, coisas de diretores artísticos, pois claro. Fevereiro é o mês da companhia residente no Vale do Minho fazer do teatro nacional a sua casa. A esta guerra de “Os Dozes pares de França” adicionem-se mais dois espetáculos, uma oficina, um documentário e uma exposição. Depois de esta Ocupação Minhota arriscamo-nos a ficar com sotaque.

Fica Sempre Alguém Para Trás Se passou no Rossio nos últimos dias reparou no enorme poster colocado na fachada do teatro nacional, um que diz Junta de Freguesia. Tudo se deve à presença das Comédias do Minho, afinal, locais como esse e pequenas associações ou coletividades são, em grande parte, os palcos que esta companhia ocupa. 

Trocar as voltas ao público do D. Maria II é dizer-lhe que nem todo o teatro se faz em salas tão esbeltas quanto as suas. “O Tiago Rodrigues disse-me que gostava que o D. Maria II pudesse abrir-se a outros territórios. Propôs-nos uma pequena utopia que é colocar, num espaço e num tempo particulares, todo o nosso trabalho. É um convite implícito a juntar a esta experiência uma ida ao Vale do Minho, a única coisa que fica a faltar é o nosso público” , esclarece João Pedro Vaz. O mesmo que trata de explicar que a própria Ocupação Minhota, o ato de largar a paisagem minhota e viajar é, só por si, matéria para pensar. “Estas vindas para fora têm sempre um duplo sentimento. Ao mesmo tempo que ganhamos na relação com pessoas que normalmente não têm disponibilidade para se deslocar ao Vale do Minho, ficamos com território em perda. É também uma reflexão sobre o que é isto de estar a trabalhar noutro lugar, tirarem-nos de lá não é fácil”.

Estética da Ruralidade O mundo é demasiado citadino. Perdoem-nos a máxima meio cliché, mas o resto é, como se costuma sempre dizer, paisagem. E é mesmo, tanto que é possível fazer teatro contemporâneo em zonas onde o 3G é um pouco mais lento.

Daí que João Pedro Vaz tenha idealizado uma peça que é um auto popular profano, algo que muitos entendidos teatrais urbanos podiam de imediato classificar como fora de moda. Felizmente, demos antes a palavra a João Pedro Vaz: “O auto popular interessa-me. Aqui é colocar num sítio absolutamente central um repertório e uma herança de representação periférica, isto é uma espécie de linha de tensão, ou seja, trazer para o Teatro Nacional, um repertório entre aspas menos nobre”.

Mas atenção, que esta nobreza improvisada sabe bem falar. Estando nós perante um auto popular estamos sob um texto de rima constante, de uma exigência atroz, pois a rima não pode sobrepor-se ao conteúdo, o artifício não pode vencer a mensagem. “É um texto que foge a uma ideia mais clássica de psicologia para o ator, ou seja, há uma humildade, o intérprete torna-se veículo de uma comunidade. É preciso lembrar que esses textos eram feitos como ritual da própria comunidade, são quase sempre textos de guerras, essa coisa dos mouros e dos cristãos. Os atores têm que ter uma grande capacidade técnica, tem que se ir direto ao assunto e largar os maneirismos do ator, é um desafio acrescido”, conta.

Entre batalhas e esgrimas meio trôpegas, há cinco dos doze pares que ficam aprisionados nas masmorras de Almirante Balão. Sorte a sua que são brindados pela sua filha Florípes (Ana Valente), moura com uma beleza estranha, densa, olhar profundo, ao ponto de todo o homem se apaixonar à primeira. É aí que a festa começa, que é igual a dizer que a guerra está longe do fim.

Bom, isso foi mais ou menos o que andamos a defender nestas linhas. Mesmo no final da peça não há volta a dar, este confronto parece ser para continuar. O conceptual e não só, que o literal deve prosseguir noutra altura, quando “Os Doze pares de França” forem apresentados no__Vale do Minho, onde o elenco do teatro nacional também terá um choque geográfico-sociológico. “É uma battle, aqui os meus atores ficam frágeis perante esta caixa, lá em cima, a escala inverte-se. São quase dois espetáculos no mesmo, campo contra campo, é uma dupla experiência. Isto é uma guerra entre uma máquina de paisagem e uma máquina de pena, eles têm os artifícios, as máscaras e os atores das Comédias do Minho vêm mais despojados. É o exército que se conseguiu criar para chegar a este teatro”.

miguel.branco@ionline.pt