A Medicina é um bom exemplo do modo como mudou tanto a forma como encaramos o risco. Era um saber quase sagrado e inatingível, e passou, em poucas décadas, a ser vista como um saber de que todos julgam possuir um pouco. Da mesma forma que o risco, antes uma quase inevitabilidade, passou a ser encarado no pensamento corrente como uma quase absoluta evitabilidade; o que é tanto mais paradoxal quanto mais levarmos em conta que nunca como agora estivemos sujeitos a tantos e tão variados riscos. A expansão do risco foi acompanhada de uma hipersensibilidade relativamente à concretização dos riscos em resultados danosos. Como se tudo fosse evitável, previsível e dominável. Quase sempre, quando o risco se concretiza em dano, a tendência é para dizer que houve falha e para querer censurar e punir, como se a fatalidade tivesse sido erradicada da vida. Mas, parafraseando Mark Twain, as notícias sobre a morte da fatalidade e do risco incontrolável são manifestamente exageradas.
Nem todo o risco é evitável ou controlável, e a fatalidade não foi, nem pode ser, erradicada das nossas vidas. E sempre assim será, enquanto a natureza for natureza e o homem for homem. Não existe sempre falha ou motivo para censura quando o risco se concretiza em dano. A chave não está em erradicar o risco (e essa ilusão é mãe de muitos erros), mas sim em procurar fazer o melhor possível para o gerir, criando e cumprindo regras e procedimentos que procurem evitar e controlar, da melhor forma, os riscos previsíveis. Mas sempre ficará de fora o que não é previsível, controlável ou evitável, mesmo com os melhores esforços. A chave está em encontrar boas práticas, mas as boas práticas não são a garantia de resultados sempre felizes, são apenas a garantia de que os resultados infelizes serão no menor número possível e com a menor danosidade possível. Em matéria de riscos, as obrigações são sempre de meios (os melhores), não de (evitar) resultados.
Nem sempre a ausência de salvação ou de melhoras significa que houve falha ou negligência. Pode haver ou não, dependendo, desde logo, da previsibilidade, da evitabilidade e do que se fez ou não (e podia ou não ser feito). E há, ainda, um outro ponto importante: o risco é condição essencial da vida, sobretudo hoje. Da mesma forma que não há alguns queijos suíços sem buracos, pois estes são o resultado inevitável de bactérias ou de pedaços de feno que vêm com a ordenha. O ponto não está em erradicar os buracos do Emmental ou do Appenzell, mas sim em procurar que não sejam em demasia ou grandes de mais ou que não estejam todos alinhados. Quando assim acontece, então haverá falha ou negligência, bem como responsabilidades a censurar. Mas isso só acontece nalguns casos – menos do que pensamos, embalados na ilusão moderna de que todos os desfechos podem ser felizes. É preciso que saibamos que a fatalidade inevitável não é coisa do passado, até para podermos lidar melhor com isso e apostar em evitar o que é realmente possível.
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