1. Falar e escrever sobre a justiça, os seus protagonistas e as relações deles com os cidadãos e o mundo em que vivem nunca foi uma tarefa fácil.
E, todavia, muitos são os autores que, com uma ou outra abordagem literária, procuram retratar, explicar e criticar as práticas judiciais e as idiossincrasias e comportamentos dos seus profissionais.
Em muitos casos, as obras que abordam as questões da justiça – e principalmente da justiça criminal, a mais falada – não conseguem distinguir os objetivos e metodologias da ação da justiça das dos polícias.
Nesta fase atribulada da vida da humanidade, em que os valores da segurança parecem querer sobrepor–se aos valores da justiça, essa confusão afeta mesmo – infelizmente – alguns dos que exercem certas funções judiciais. Em consequência, não admira que aqueles a quem incumbe noticiar e explicar ambas as atividades e respetivas diferenças não o consigam, muitas vezes, fazer corretamente.
Tal confusão tende, todavia, a reduzir o enfoque necessário a uma apreciação mais ampla da ação da justiça e dos seus problemas específicos.
Ora, essa explicação e consequente apreciação são hoje imprescindíveis.
2. A justiça vem ganhando, com efeito, um crescente interesse social na medida em que, por via da melhor consciência que os cidadãos têm dos seus direitos e da maneira de os poderem reivindicar, vem sendo chamada a decidir questões económicas e sociais da maior relevância, as quais, por razões políticas ou culturais, lhe estavam antes vedadas.
O tipo de crítica que se aponta à justiça tinha, portanto, de mudar: ela não se limita já a uma crítica técnica, mas dirige-se, mais frequentemente, aos aspetos e consequências políticas e sociais das decisões tomadas ao longo do processo pelas diferentes magistraturas.
Se esse fenómeno, por um lado, faz polarizar como nunca a atenção dos cidadãos na ação da justiça – empolando o seu papel e responsabilidades –, ele acaba, por outro, por a expor a um escrutínio popular mais alargado e fácil.
Dado o palco mediático em que acontece tal escrutínio, este dificilmente consegue conter-se em discursos suficientemente rigorosos e capazes de, simultaneamente, clarificar e criticar a ação da justiça no plano social e técnico, separando dela as próprias responsabilidades políticas do legislador.
3. Por esse motivo, não pude deixar de ler avidamente o último romance de Ian McEwan, “The Children Act”.
Nele, o autor consegue a proeza, sem condescendências ou panegíricos fáceis, de retratar a paradoxal função dos magistrados: as dificuldades das decisões fundadas em valores jurídicos e morais, a necessidade e complexidade da clarificação de um discurso argumentativo rigoroso, as frequentes contradições entre a idiossincrasia do legislador, do decisor e daqueles a quem a decisão diretamente se dirige, as tensões psicológicas de que o magistrado padece quando tem de resolver os casos dos outros e não tem tempo, ou disposição, para resolver os seus próprios problemas.
Sem “tremendismos” populistas, mas também sem medo de expor com acutilância todo o mundo de paradoxos que rodeia as condições objetivas e subjetivas da tomada da decisão judicial, Ian McEwan contribuiu mais, com este seu romance, para a compreensão pública do mundo da justiça e das suas dificuldades e limites do que muitos ensaios e debates que, ao longo da vida, li e ouvi sobre o assunto.
Se há obra que ajuda a explicar a justiça e necessita, por isso, de ser lida por todos juristas, jornalistas, comentadores judiciais e cidadãos é esta.
Jurista, Escreve à terça-feira