1. Ultimamente, o já usual sentido (mais ou menos) político das críticas dirigidas à justiça portuguesa evoluiu para o plano pretensamente científico e tem procurado ainda sedimentar-se no plano cultural, o único que, a prazo, terá efetiva influência na sua legitimidade social.
É evidente que numa democracia aberta e numa sociedade em que os interesses diferentes, e por vezes antagónicos, se podem expressar livremente não há, e não pode haver, nenhum campo da vida social ou instrumento de exercício de poder que escape ao crivo da crítica pública.
O próprio sagrado e os fenómenos religiosos e igrejas que eles geram estão hoje sob um escrutínio que tanto se exerce no puro plano das ideias como no do julgamento da coerência e dos comportamentos dos que socialmente as sustentam.
Nada nem ninguém escapa, ou pode presumir escapar, à apreciação e ao julgamento públicos.
Mas reconhecer isso não significa que se deva aceitar sempre e passivamente – acriticamente, portanto – todo o tipo de apreciações, ou que se não questione a qualidade e neutralidade de algumas das mensagens e dos protagonistas de tais críticas.
2. A televisão portuguesa passa atualmente, em diferentes canais, dois programas de natureza distinta que, em conjunto, veiculam uma imagem cultural da justiça que não pode senão conduzir à sua deslegitimação social e política.
Num desses programas, apesar do profissionalismo e dos esforços em contrário da jornalista que o orienta, perpassam continuamente ideias erróneas e desinformadas sobre os problemas e debates jurídicos que ocorrem na comunidade jurídica portuguesa – judiciária e académica –, confundindo-se sistematicamente o sentido da jurisprudência nacional e europeia e a realidade efetiva dos seus sistemas jurídicos e judiciários.
Mais do que o exagero que caracteriza a caricatura, o que ali perpassa é pura desinformação.
No outro, uma telenovela, o personagem principal é um juiz que corporiza exatamente todo o tipo de comportamentos sociais negativos e que a sociedade hoje mais condena: a corrupção e a violência de género.
Num momento em que os agentes da justiça centram, precisamente, as suas preocupações na deteção, na contenção e na punição desses dois fenómenos criminais, a coincidência do argumento da novela não pode passar despercebida e ganha um perturbante sentido político.
Que isso possa acontecer sem, pelo menos, uma nota de perplexidade, inclusive por parte das associações profissionais de magistrados, da advocacia ou da academia, parece preocupante e sinal de alguma dissolvência dos valores democráticos e do Estado de direito.
No fundo, preocupa que nenhum desses intervenientes procure perceber por que razão foi possível ter-se chegado a um ponto em que uma tal imagem da justiça possa afirmar-se em público sem nenhum sobressalto cívico e como se de uma realidade verdadeira e comum se tratasse.
Sublinho: a questão que se coloca não é a da censura ou da falsa indignação perante tais fenómenos mediáticos e culturais.
A questão que deve merecer a atenção de todos – poderes públicos antes de tudo e, depois, associações profissionais e academia – é, exatamente, o que poderá estar na origem de tal retrato da justiça portuguesa.
Como foi possível chegar aqui: quem realmente errou e onde, e quem colaborou para que tal imagem amplamente deformada da realidade – tanto no plano científico como ficcional – possa passar sem a mínima preocupação ou comoção pública?
Jurista, Escreve à terça-feira