Nenhum dia é bom para morrer. Ainda que seja passagem de ano, ainda que se seja filha de uma das maiores vozes de todos os tempos, ainda que se seja uma diva de quem todos têm boas memórias. Natalie Cole, filha de Nat King Cole, morreu na noite de 31 de Dezembro no hospital Cedars-Sinai, em Los Angeles, devido a uma insuficiência cardíaca. Tinha 65 anos.
Não se estranhe, no entanto, a causa da morte, uma vez que o complexo historial clínico da cantora não era uma novidade. O uso e abuso de drogas como a heroína ou a cocaína viriam a afetá-la para o resto dos seus dias, ainda que em 1984 tivesse conseguido superar o vício através de um programa de reabilitação que durou seis meses. Mas o passado é tramado, ao ponto de em 2008 lhe ter sido diagnosticada hepatite C. Pior se tornaria quando um ano depois foi sujeita a um transplante de rim, culpa de uma falência renal que a havia condenado à hemodiálise. “A Natalie travou uma feroz e corajosa luta, morrendo como viveu…com dignidade, força e honra. A nossa amada mãe e irmã vai-nos fazer muita falta e vai permanecer inesquecível nos nossos corações, para sempre”, podia ler-se no comunicado do filho Robert Yancy e das irmãs Timolin e Casey Cole. A vencedora de nove Grammy vai deixar saudades.
Menina do papá Como se não bastasse ter o pai que tinha, Natalie Cole era ainda filha de uma antiga cantora da Duke Ellington Orchestra, Maria Hawkins Ellington. Nasceu em 1950, em Los Angeles, e o talento já lhe corria nas veias. Pouco tempo depois a voz começava a indicar que podíamos bem estar perante mais um caso de sucesso desta família. Bem dito, bem feito, apenas com 6 anos Natalie cantou no disco de Natal do seu pai. Aos 11 fez a sua estreia ao vivo, mostrando dotes que confirmavam uma herança que viria a carregar ao longo de toda a carreira, sem aparente esforço.
Filha de uma lenda jazz, lenda jazz se quer. Só isso explica a razão pela qual “Inseparable”, o seu disco de estreia em 1975 tenha levado tanto tempo a ser aceite por uma editora. Sorte, e astúcia claro, da Capital Records que viria a editar um disco que deu direito a dois Grammy, o primeiro como Best New Artist, assim como de melhor tema de r&b com “This Will Be (An Everlasting Love)”. A norte-americana não desprezava o jazz, nada disso, mas parecia mais dada a géneros como r&b, o rock, e mesmo a pop, que a viria a eternizar mais tarde. Tudo a seu tempo.
Nat King Cole viria a morrer de cancro do pulmão em 1965. Natalie tinha 15 anos mas entendia o que era ser filha de uma estrela da música. Talvez essa circunstância a tenha feito acordar para uma herança que a levou à ribalta. Em 1977, com o single “Sophisticated Lady” arrecadaria mais um Grammy. Proeza que só se viria a repetir em 1992 – dez álbuns depois –, um ano após ter editado “Unforgettable… with Love”. Objeto que serviu como etiqueta para muitos eventuais cabeças no ar, como se quisesse gritar ao mundo: “Não se esqueçam do meu pai”. Venceu o disco e tema do ano com uma série de novas versões e covers de faixas do seu pai, como “Mosa Lisa”, “Lush Life”, entre outras. Os novos tempos – e as máquinas que estes trouxeram – trataram de lhe realizar um dos seus maiores desejos: voltar a cantar com pai. “Unforgettable” (em dueto com Nat King Cole) foi o seu maior hit, responsável por existir pouco gente que não saiba de quem estamos aqui a falar.
Seria injusto, todavia, justificar a sua fama e respetivo proveito através do seu bilhete de identidade. 1977, por exemplo, foi um ano grande para Natalie Cole. Editou “Unpredictable” e “Thankful”, de onde se retiram dois dos seus maiores sucessos: “I’ve Got Love on My Mind” e “Our Love”, respetivamente. Sem nunca conseguir esquecer outra das faixas que cantou com o pai à boleia da tecnologia “When I Fall in Love” (com Nat King Cole) foi editado em 1994 e valeu outro Grammy. Se nesta década de 90, Cole estava numa praia onde se estendiam duas toalhas – jazz e pop – no final da década de 70 tudo era r&b em ponto rebuçado. Sim, Natalie Cole foi uma das artistas que deu espaço e oxigénio a este género específico, nem sempre apreciado de forma global.
A página seguinte da sua história escreveu-se em 2009, quando lançou “Still Unforgettable”, seu 19º disco e aquele que a fez regressar aos tops e vencer o último Grammy. É quase estranho que seja com invocações à carreira do pai que Natalie Cole tenha atingido os melhores palcos da sua estrada. Foi assim com todos os discos onde assina músicas em colaboração com o pai. Em 2008 disse: “Continuo a adorar gravar e estar em palco, mas como o meu pai divirto-me mais quando estou à frente de uma orquestra gloriosa ou de uma big band do caraças”. Talvez isto explique muita coisa.