Venezuela. Duas máquinas estatais em estado de guerra

Venezuela. Duas máquinas estatais em estado de guerra


Nicolás Maduro passou um mês a tentar desfazer a maioria qualificada que a oposição obteve nas urnas. Mas a Assembleia Nacional já não tem imagens de Hugo Chávez. E voltou a ter jornalistas.


Como gesto que pretende mostrar o corte com o passado recente do país, o novo presidente da Assembleia Nacional (AN) da Venezuela, Henry Ramos Allup, mandou retirar as imagens de Hugo Chávez e de Simão Bolívar que estavam expostas na sede do principal órgão legislativo do país. Cerca de 24 horas mais tarde, já depois de o presidente Nicolás Maduro se ter demonstrado “indignado” com a decisão, Jorge Rodríguez – uma espécie de autarca da área metropolitana de Caracas – anunciava que essas mesmas imagens ficarão “em exibição permanente na Praça Bolívar” da cidade.

Mais, os rostos dos “pais” da revolução bolivariana serão colocados “em todas as ruas de Caracas e em todos os postes da cidade”, anunciou o autarca ligado ao Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV).

O caso simboliza o extremar de posições entre regime e oposição desde o dia 6 de dezembro, data em que os últimos conseguiram impor a primeira derrota eleitoral do PSUV em 17 anos e formar uma maioria parlamentar com mais de dois terços dos deputados – 112 em 167.

Foram esses os resultados anunciados após a contagem final. Mas no dia da tomada de posse, na terça-feira, já o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) tinha decidido suspender a eleição de três deputados do estado da Amazónia, devido a acusações de fraude eleitoral por parte de Nicolás Maduro. Sem providência cautelar decretada, os votos nos estados de Yaracuy e Aragua, assim como a eleição de um deputado indígena no sul do país, também ficaram sob investigação no STJ depois de Maduro ter dito que houve “grupos a controlar parte do sistema eleitoral, violar os mecanismos de segurança e pagar votos”.

Sem os três deputados da Amazónia, a MUD perde a maioria de dois terços, cenário que reduz drasticamente a sua capacidade de ação perante um regime instalado no poder desde 1999. Só com a maioria qualificada a MUD poderá criar em seis meses “um mecanismo que torne possível mudar de governo”, como anunciou Ramos Allup na tomada de posse.

E como considera que a decisão do STJ “arrancou viciada de nulidade” – por ter sido tomada já na presença de 13 juízes nomeados pelo PSUV depois da derrota eleitoral e do fim do mandato do parlamento anterior –, a liderança da MUD decidiu dar posse aos três deputados provisoriamente suspensos pela justiça.

“Vamos apresentar uma denúncia por desobediência contra a direção da AN para que fique claro que todos os atos que está a realizar carecem de validade”, avisou de imediato Diosdado Cabello, número 2 do PSUV que foi ministro das Obras Públicas de Chávez antes de ter liderado a casa parlamentar nos últimos quatro anos. “Como esperam eles ser reconhecidos pelo governo, que nem sequer devia enviar dinheiro para a AN, que é uma instituição que não tem qualquer tipo de legitimidade?”

Não foi apenas a presença dos três deputados suspensos que irritou Cabello. Nas primeiras 48 horas no Congresso, a MUD aprovou o regresso à cobertura parlamentar pelos jornalistas dos meios de comunicação que Hugo Chávez proibira de lá entrar há cinco anos. Iniciou o debate sobre a lei de amnistia com que pretende libertar os 75 presos políticos do país – e acrescentou-lhe o pormenor de permitir aos detidos exigir indemnizações ao Estado pela privação de liberdade. Anunciou a criação de uma comissão parlamentar que investigará a legalidade da nomeação dos 13 juízes. E ainda piscou o olho aos eleitores do PSUV, propondo uma lei que passará os milhares de habitações sociais construídas pelo chavismo – atualmente arrendadas com contratos a prazo – a propriedade privada dos atuais beneficiários. Isto para além da retirada das fotos de Bolívar e Chávez.

Quando a derrota era apenas especulada pelas sondagens, Maduro prometeu que se esta se confirmasse, iria “para as ruas lutar com o povo, como sempre”. Na terça-feira, apoiantes do PSUV concentraram-se à porta da AN para receber os novos legisladores com cartazes com a figura de Hugo Chávez e mensagens contra o que chamam “golpe de Estado da direita fascista”. Para já eram poucas centenas, mas a tensão entre as duas Venezuelas aumenta de dia para dia.

nuno.e.lima@ionline.pt