Luiz Felipe Scolari. Selfie-se quem puder

Luiz Felipe Scolari. Selfie-se quem puder


Em 33 anos de carreira, acumula 31 finais, 15 em sistema de eliminatória. Ao todo, 11 títulos, cinco deles só com vitórias. Uma viagem da Taça do Brasil-91 à Liga dos Campeões Asiáticos-2015.


Granja Comari, centro de estágio da selecção brasileira. É o Mundial-2014. Nas linhas laterais, os jogadores agarram nos telemóveis ou nos iPads de curiosos e tiram fotografias a eles mesmos. A chamada selfie, a febre do momento. Do momento? Alto e pára o baile.

Em 1911, na corrida à conquista do Pólo Sul, o norueguês Amundsen e o inglês Robert Scott protagonizam uma das aventuras mais admiráveis do século xx, um duelo realmente inesquecível. Ganha a Noruega, com a bandeira espetada a 14 de Dezembro de 1911. O vencido Scott só lá chega cinco semanas depois, a 17 de Janeiro de 1912, e tira a fotografia de grupo para a posteridade. Seria a sua última, porque não sobreviveria à viagem de regresso devido às baixíssimas temperaturas (70 graus negativos). Curiosidade dessa fotografia: há dois homens sentados e três de pé. Ué, se o grupo é formado por cinco, quem dispara?

Aí é que está: Scott ata um fio à máquina, vai para o seu lugar (o do meio, de pé) e cheeeeeese. Se isto não é selfie, já não sei o que ando aqui a fazer.

Fechado este parêntesis, retoma-se o assunto na Granja Comary. É o “selfie-se” quem puder, alegria todo o dia. É sempre assim, com Luiz Felipe Scolari ao leme de todas as provocações, zoações e outros que tais. O bom astral tem um fim inesperado. E trágico. Na meia-final, a Alemanha dá um memorável banho (7-1) e envergonha o Brasil. Lógico,Scolari sai de fininho. Um mês depois, assina pelo Grémio. Nada feito, a sua estrela continua pálida.

Vai daí, aventura-se na China pelo Guanghzou Evergrande em Junho. Pelo quê? Pelo tetracampeão chinês, de olho na Liga dos Campeões Asiáticos. This is a job for Scolari. Em 33 anos de carreira como treinador, acumula 30 finais, 14 delas em sistema de eliminatória. Nessas, Felipão conquista dez títulos, o último dos quais em 2012, pelo Palmeiras. É então a sua quarta Taça do Brasil. Um fenómeno sem igual.

A PRIMEIRA DE MUITAS

A aventura começa no Criciúma. “Em 1991”, conta Scolari, “a vitória de uma equipa menor de Santa Catarina é um feito inédito, que nunca acontecera e jamais se repete. O nosso estádio era novo e as pessoas estavam eufóricas. Eu nem consegui viver por muito tempo aquela emoção da vitória e rescindi o contrato para assinar por um clube árabe.” A campanha do Criciúma é um conto de fadas, sem derrotas. Ubiratan, Atlético Mineiro, Goiás e Remo caem no caminho para a final com o Grémio. Aí prevalece a regra dos golos fora: 1-1 em Porto Alegre, 0-0 em Criciúma. “Houve acontecimentos imprevistos, como aquela meia--final com o Remo. Estava um calor de 40 graus, um inferno para uma equipe catarinense. Meia hora antes do jogo, chuva. O campo ficou molhadinho, muito bom para o Criciúma e mau para eles. Fomos e ganhámos 1-0. Ninguém dá bola para essas coisas mas é importante”, conta Felipão, que paga o prémio da Taça aos jogadores do próprio bolso.

Em 1994, já pelo Grémio, outra Copa do Brasil. Novamente sem derrotas. Criciúma (olha quem), Corinthians, Vitória e Vasco da Gama caem sem pestanejar até à final com o Ceará. Ao 0-0 no castelão de Fortaleza segue-se o 1-0 em Porto Alegre, obra de Nildo aos três minutos. Esse golo garante a Taça e a presença na Libertadores-95, ganha precisamente pelo Grémio de Jardel (futuro dragão), Carlos Miguel (futuro leão) e Paulo Nunes (futura águia), mais tarde batida pelo Ajax nos penáltis da Taça Intercontinental. Que viagem! Vamos a outra?

Quatro anos depois (1998), Scolari é do Palmeiras. Nos primeiros dias encarrega o roupeiro Chiquinho de comprar 26 cestas básicas todos os meses. Gasta quase 3 mil reais e distribui-os ao staff palmeirense de todas as categorias. No meio da campanha da Copa, estabelece uma série de cinco jogos sem vitórias (uma derrota mais quatro empates) e pede a redução de salário a um dirigente do Palmeiras. O assunto só será esquecido em caso de vitória na Taça. E o golo de Oséas aos 89 minutos provoca a euforia no Morumbi (2-0), depois da derrota (1-0) em Belo Horizonte com o Cruzeiro. Quê, duas derrotas? Não interessa, siga.

Mundial-2002, o Brasil é penta com com sete vitórias sem pestanejar (Turquia 2-1, China 4-0, Costa Rica 5-2, Bélgica 2-0, Inglaterra 2-1, Turquia 1-0 e Alemanha 2-0). Sim senhor, é um Mundial atípico, mas o Brasil supera críticas, traumas e péssimas arbitragens para acabar em beleza.

Cumpre a preceito uma missão que parece impossível à partida, tal o rol de favoritos, como Argentina, França, Itália, Espanha, Alemanha e até Portugal (campanha invicta de qualificação da geração de ouro). Para chegar invicto a Yokohama, Felipão sofre pressões inimagináveis depois de abdicar de Romário. A sua ideia de equipa é construir uma família sem estrelas nem astros. Defesa agressiva, ataque imaginativo com os três erres (Ronaldo fenómeno, Ronaldinho Gaúcho e Rivaldo).

BRASILEIRO DE OLHOS EM BICO

Sai de cena e aventura-se em Portugal. É vice-campeão europeu em 2004 e esbarra na meia-final do Mundial-2006, vs. França. Volta à base e faz-se campeão da Copa brasileira pelo Palmeiras. Outra vez, sim. Agora invicto.Aleluia, né? Pelo caminho, atropela Coruripe, Horizonte, Paraná, Atlético Paranaense e Grémio (olha quem) antes de sentenciar o título com o Coritiba. A ressaca é gloriosa: a federação brasileira oferece-lhe o cargo mais desejado, o de guiar o Brasil num Mundial em casa. A coisa corre-lhe francamente mal e o quarto lugar é criticadíssimo em todo o mundo. Ou quase. Há uma parte do globo ainda com esperança em Felipão. Na Ásia, claro. Campeão no Mundial de Japão/Coreia do Sul, só lhe falta evangelizar a China. Meu dito, meu feito.

O Guanghzou Evergrande é um desafio à sua medida. O brasileiro chega lá em Junho com o dever de conquistar dois títulos. Pois bem, Scolari cumpre a missão. Sem qualquer derrota. O título de campeão chinês chega na última jornada, tipo photo-finish, com dois pontos de avanço sobre o Shanghai de Sven-Goran Eriksson. Solto o grito de penta, Scolari vira-se para o título continental. Após duas vitórias e três empates, o Guangzhou joga em casa com o AlAhli, dos Emiratos Árabes Unidos, onde joga o ex-benfiquista Lima. Só é preciso ganhar. A parte do “só” é rematada pelo brasileiro Ekelson. Um-zero é mais que suficiente. O Guangzhou é o rei da China e da Ásia. Cortesia Scolari, o do selfie-se quem puder. J