Temos governo, depois de um daqueles cenários que mais pareciam recordar a espera pelo fumo branco que sai da chaminé da Capela Sistina quando se elege com a maioria exigida um novo Papa. Agora também se esperou pela obtenção da “nova maioria” para, finalmente, se queimarem os boletins de voto dados aos eleitores no 4 de Outubro. Também se lançou para o forno da queimada o produto milagroso que branqueia o fumo e dá a boa nova. Afinal nem só de novas convenções se viveu nestes quase dois meses de espera – há sempre práticas antigas, e com a carga religiosa das tradições, para explicar as novas regras do jogo. Visto o fumo, resta fazer descansar as artilharias, que é como quem diz pacificar as hostes, retrair a crispação, baixar o espírito de vingança e atribuir normalidade ao tempo seguinte.
O país está melhor e mais credível (ainda que com o sacrifício evidente e reiterado dos mais pobres e da classe média), mas está ainda muito doente (sem sanação evidente dos vícios orçamentais da máquina de produção de bens e prestação de serviços do Estado). Precisa de estabilidade e confiança, ainda que venha a governar-se sob uma nova espécie de protectorado: antes a troika, com as exigências periódicas dos credores externos, agora os parceiros parlamentares (desconfiados e demandantes) do PS (equilibrista) no governo, enfiado nos gabinetes a gerir as reclamações de BE e PCP. Vai ser esta a vida.
Nessa vida assim escolhida, António Costa e os seus ministros têm dois grandes desafios, ligados entre si em condição. Primeiro: demonstrar que é possível gerir o Estado (e consequentemente a vida das famílias e das empresas) sem (ou pelo menos com menos) austeridade – leia-se, restrições de rendimentos e aumentos de impostos –, com “relançamento” da economia e do emprego e planos de assistência social e redução das desigualdades.
Segundo: reformar com acrescento e sumo o Estado social (em sentido revisitadamente amplo) – leia-se, os programas de financiamento, sustentação e melhoria (pelo menos) da educação, da saúde, da justiça, da defesa e das polícias, do desenvolvimento do território, da ciência, da cultura e da Segurança Social, tendo a “descentralização” como motor da revisão do Estado-administração. Em tese, se o leitor tiver esse cuidado, o detalhe está nos (pormenorizados e cuidadosos) cinco capítulos do programa eleitoral que o PS apresentou para ganhar à coligação PSD-CDS.
É a quadratura do círculo, com a sua régua e compasso em confronto previsível com as ameijoas em que se fecharam os interesses das corporações, das associações de interesses e dos poderes fácticos estabelecidos. E sem estado de graça, dinamitado nestes dois meses de desgaste profundo.
Ou seja, António Costa e os seus governantes ficaram sem os argumentos de outrora para culpar os falecidos, que deixaram uma alegada insuportável herança, sem autoridade para mostrar admirações com as contas deixadas por Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque enquanto se prepara o Orçamento, muito menos ficaram com legitimidade para pedir retrocessos no libertar dos espartilhos dos tributos em prejuízo das subvenções e dos privilégios.
Ninguém compreenderia que, depois de tanta batalha, a guerra não fosse para retomar ordenados e pensões, para mais estabilidade laboral e emprego e mais qualidade de vida. Mesmo com a vigilância apertada da União Europeia e da torneira dos financiamentos a juros que se possam pagar no futuro. Vai ser esta a vida. A vida que o fumo branco anunciou.
Professor de Direito da Universidade de Coimbra. Jurisconsulto.
Escreve à quinta-feira