Na história da justiça de Portugal surge uma figura que hoje nos devia inspirar: os “juízes por el-Rei, juízes de fora ou juízes de fora parte”, os quais “eram […] indivíduos estranhos ao concelho, sem o foro de vizinhos, em muitos casos […] com graus universitários, que recebiam do monarca a autoridade e a quem os concelhos tinham de pagar ordenado certo, ao contrário do que sucedia com os juízes da terra”.
A ratio de criar a figura deu-a lapidarmente D. Afonso IV: “Os juízes naturais da terra de dereito e de razom hão muitos azos pera nom fazerem compridamente justiça […] porque os naturais da terra teem hi muitos parentes e amigos e outros que com ele hão dividos de conlacia e doutros semelháveis e alguns com outros hi malquerenças e desamor, ou hão receança deles, por os quais o dereito presume que tão compridamente nom farão dereito come os estranhos” (idem, ibidem).
Recorde-se que nessa época da nossa primeira dinastia os juízes não eram um corpo nacional, antes sendo vizinhos do próprio lugar, eleitos anualmente, sem qualquer preparação ou formação especial. Um género de sistema “americano” de juiz eleito, mas medieval, em que cada concelho ou conjunto de povoações elegia vizinhos para a tarefa de administrar a justiça aos povos pelas circunscrições do país. Das decisões destes juízes ordinários, e leigos em direito cabia apelo para o Tribunal da Corte, quando passasse itinerante. Com o passar do séculos estes juízes locais e municipais passaram a ser fiscalizados também por enviados do rei, fossem permanentes, fossem ad hoc.
Foi precisamente a constatação dos desmandos que se viviam em termos de administração da justiça, entre a fundação, no século xii, e o início do século xiv, que o legítimo poder político de então criou esta figura do juiz de fora. E ainda assim demorou século e meio para actuar.
Voltando à citação de D. Afonso IV, era óbvio que os juízes da terra, amigos, familiares, contendores ou adversários, tementes ou atemorizantes de qualquer das partes, não eram imparciais. E o monarca teve a clareza de dizer o que hoje ninguém – nem S.S. o Papa – diria: presume o direito que os juízes da terra não farão tão boa justiça como os estranhos.
Esta clara e óbvia lei de bom senso que norteava o poder do século xiv, para evitar desmandos judiciais, infelizmente, perdeu-se no pó dos tempos.
Sete séculos volvidos, na era do conhecimento, da civilização, da tecnologia, num tempo em que já não há fisicamente “vizinhos” e “estranhos”, esquecemos duas realidades óbvias: a) que a diferença entre “vizinhos” e “estranhos” continua a existir, sendo outras as fontes das “conlacias”, “malquerenças” e “receanças” que não a vizinhança física; b) que quem é “de fora” passa a ser “vizinho” quando se eterniza na mesma função, no mesmo posto, pois é humano criar “conlacias” ou “malquerenças e desamor” com todos aqueles a quem por lustres se vai aplicando o direito. Qualquer psicólogo confirmará isto.
Mas se pugnar pela imparcialidade dos julgadores sempre foi, em todos os tempos e geografias, um dever de consciência dos homens justos, parece em alguns lugares ser ainda crime de lesa-majestade, ou seja, continua a haver “receanças”.
O que por si só mostra quanta falta fazem ainda os “juízes de fora”.
Advogado
Escreve à sexta-feira