Ouando as primeiras notícias sobre suspeitas de corrupção na atribuição de vistos gold saíram nos jornais, no início do ano passado, António Figueiredo, então presidente do Instituto dos Registo e Notariado (IRN), confessou a um amigo que se tinha limitado “a fazer aquilo que os outros andavam a fazer, nomeadamente o Paulo Portas”. Na mesma conversa, reproduzida na acusação deduzida recentemente pelo Ministério Público (MP), Figueiredo terá acrescentado que, se o negócio dos “amigos” chineses prosperasse, deixaria o instituto.
António Figueiredo, acredita o MP, esforçou-se para que os projectos dessem certo. Terá aproveitado as horas de almoço para visitar casas de luxo que poderiam interessar a chineses; terá acompanhado um dos principais arguidos, Zhu Xiaodong, a reuniões em bancos e intermediado contactos com autarcas e governantes; e terá posto as secretárias e o motorista do IRN à disposição do amigo, a quem daria conselhos burocráticos e ajudaria a “agilizar” burocracias, recorrendo a amigos como o então ministro Miguel Macedo ou o ex-director do SEF Manuel Palos. Mas os planos saíram furados e as empresas dos chineses investigados na OperaçãoLabirinto acabaram por fechar com prejuízos a rondar os 2 milhões de euros.
Os supostos planos de António Figueiredo e dos chineses Zhu Xiaodong, Zhu Baoe e Xia Baoling – os três acusados de corrupção activa e tráfico de influências – eram, segundo as descrições do MP, grandiosos. Zhu Xiaodong, empresário que vive em Portugal desde a década de 1990, sonhava instalar uma Casa da China num imóvel de prestígio em Lisboa e terá cabido a António Figueiredo mexer contactos para encontrar um “palacete” à medida. Os projectos não ficaram por aqui: os chineses terão tentado comprar o Palácio da Junqueira por 3,8 milhões de euros com o objectivo de lá instalar uma “casa de massagens”. Porém, o negócio acabou por não se concretizar porque a proposta foi considerada baixa. Xiaodong terá chegado também a visitar o Clube dos Empresários, na Avenida da República – transportado pelo motorista do presidente do IRN –, mas não comprou porque achou o palácio demasiado pequeno: só tinha 600 metros quadrados. Um outro grande negócio, mediado pelo Santander, esteve para se concretizar em Abril de 2004: a compra de terrenos para construção na Marginal de Cascais. Xiaodong apresentou uma proposta de 20,3 milhões de euros, mas a aquisição caiu por terra. Em cima da mesa também terá chegado a estar a compra de uma casa na Quinta da Marinha por 4 milhões de euros e a aquisição de um condomínio na Penha Longa avaliado em 17 milhões. Pelo meio terá havido contactos com a Câmara de Lisboa para a compra de imóveis do património municipal. E Xiaodong, juntamente com o amigo Xia Baoling, terão até comprado uma empresa, a Pyramidpearl, com o objectivo de adquirir os terrenos da antiga Feira Popular.
O começo do sonho António Figueiredo terá começado a relacionar-se com chineses endinheirados em 2009. O namorado da filha era sócio de Xiaodong numa empresa chamada Hora do Descanso, que se dedicava a tratamentos estéticos, mesoterapia “e similares”. Em 2012, quando os vistos gold foram criados, Xiaodong – que era dono de lojas e restaurantes chineses – decidiu dedicar-se à angariação de casas de luxo para revender a chineses que quisessem comprar o visto português. Começou por trabalhar com a mulher, informalmente e cobrando comissões às imobiliárias que variavam entre os 3% e os 6% sobre o valor da compra.
António Figueiredo, acredita o MP, apoiou a actividade desde o começo, ajudando Xiaodong com os formalismos legais. E quando o chinês abriu as primeiras empresas destinadas ao negócio dos vistos gold o presidente do IRN terá ajudado no registo. Até que, em 2012, terão firmado um acordo. O presidente do IRN comprometia-se a ser “facilitador do processo burocrático” da compra e venda de imóveis e a pôr à disposição dos chineses e respectivos clientes os carros, os funcionários e as bases de dados do instituto – onde os assuntos de Xiaodong passariam a ser tratados como “prioritários”. António Figueiredo, que receberia comissões em troca, terá igualmente concordado “exercer influência junto de decisores públicos ou políticos” para agilizar as decisões de que o amigo necessitasse.
Nem meio ano depois de os vistos dourados arrancarem, Xiaodong abria a empresa Westeuro, com dinheiro de um neozelandês e de uma chinesa que terão conseguido vistos portugueses com a ajuda de Figueiredo e do ex-director do SEF. Essa empresa comprou, em Maio de 2013, uma outra, a Basetropical. Mais ou menos na mesma altura, Zhu constituía uma outra sociedade, a Quinta do Barão, com sede na Quinta da Marinha e que serviria para comprar um condomínio na Penha Longa por 17 milhões de euros. O negócio acabou por não se concretizar porque entretanto Zhu se incompatibilizou com os sócios – o neozelandês e a chinesa – e a empresa encerrou a 28 de Maio de 2014.
Antes, em Outubro de 2013, Xiaodong já tinha constituído uma outra sociedade, a Goldenvista Europe, também dedicada à “compra e venda de bens imobiliários”. A filha de António Figueiredo – para o MP testa-de-ferro do pai – era uma das sócias, juntamente com dois funcionários de uma imobiliária do Estoril, que também se fizeram representar pelos filhos, e um chinês milionário que vivia em Madrid. Porém, e mais uma vez, o negócio não prosperou. Um mês a seguir à constituição da empresa, os sócios participaram numa feira de imobiliário na China para angariar clientela, mas voltaram para Portugal de mãos a abanar. Pouco tempo depois, com as suspeitas de corrupção estampadas nos jornais, a empresa foi dissolvida e o que sobrou do capital social redistribuído pelos sócios.
os dias do fim A partir de fins de Fevereiro de 2014, com os jornais atentos à investigação encomendada pelo MP, Zhu Xiaodong e António Figueiredo terão mudado o comportamento por desconfiarem que estavam sob escuta. Mas, garante o Ministério Público, nem assim terão deixado de continuar a angariar casas. De tal forma que, em Março de 2014, a empresa Hora do Descanso – que o chinês tinha a meias com o genro de Figueiredo – comprou uma imobiliária, a Formabsoluta, e deixou de ser uma casa de tratamentos de estética e mesoterapia para passar a empresa de “compra e venda de imóveis, agência de documentação e actividades turísticas”. Por precaução, acredita o MP, o genro de Figueiredo desvinculou-se e a alteração à sociedade terá sido redigida por Albertina Gonçalves, advogada e sócia de Miguel Macedo e, na altura, secretária-geral do Ministério do Ambiente e Ordenamento do Território (MAOT).
Os três empresários chineses acabaram detidos, há um ano, na Operação Labirinto. Segundo as contas do MP, as empresas que abriram e fecharam só deram prejuízo. Senão veja-se: enquanto existiu, a Basetropical comprou quatro casas no Estoril e uma em Cascais por 2,1 milhões de euros. As aquisições aconteceram em Julho e Agosto de 2013 e os imóveis foram imediatamente vendidos a cinco chineses candidatos a vistos gold por 2,6 milhões de euros – gerando um lucro de mais de meio milhão. Porém, a empresa fechou antes de conseguir desfazer-se de uma outra casa, em Carcavelos, que tinha sido adquirida por 290 mil euros. Contas feitas, a Basetropical rendeu 210 mil euros. Já a Hora do Descanso só deu prejuízo: comprou um único imóvel, na Parede, por 360 mil euros, que nunca chegou a ser revendido.
Quanto à Formabsoluta, foi um verdadeiro desastre. Até serviu para comprar uma vivenda em Cascais por 850 mil euros – posteriormente vendida por mais de 1,2 milhões –, que gerou uma receita de 350 mil euros. Mas a empresa tinha feito outras aquisições: uma vivenda na Parede por 525 mil euros, um prédio em Cascais por 620 mil, um prédio em Birre por 630 mil e um apartamento em Oeiras por 390 mil. Estas casas não chegaram a ser revendidas e custaram 2,16 milhões. No total, os chineses terão perdido 1,96 milhões de euros.