No dia em que ocorreram os hediondos crimes dos terroristas do ISIS contra o povo de Paris, foi publicado no jornal espanhol “El País” um significativo artigo de Sami Naïr intitulado “El incêndio de las banlieues”.
Sami Naïr é um ilustre professor de Filosofia e Ciências Sociais em várias universidades europeias, tendo sido também deputado europeu e conselheiro do primeiro-ministro francês Lionel Jospin.
Nesse artigo, Sami Naïr analisa as políticas de integração de imigrantes que se seguiram aos motins do Outono de 2005 no seio destas comunidades, convulsões que ocorreram sobretudo nos bairros habitados por magrebinos e subsarianos em França.
Se, por um lado, faz um balanço positivo de algumas das medidas então tomadas para reduzir as taxas de exclusão e melhorar as condições de vida desses bairros, não deixa, por outro, de apontar a triste realidade que ainda persiste.
Diz ele: “(…) se em França 13,9% da população vive abaixo do limiar da pobreza, nos bairros classificados como muito pobres o índice é o triplo (38,4%). Este resultado expressa uma realidade cruel: persistência do fracasso escolar, incremento da delinquência e do tráfico de drogas, perda da autoridade das famílias, formação de bandos criminais e mafiosos, aumento da influência do designado islão radical ou do tribalismo entre jovens de origem subsariana, generalização do comunitarismo total (o facto de não se reconhecer outra pertença que não a que respeita à sua comunidade confessional ou étnica, face à comunidade francesa), tendo-se a própria americanização dos guetos convertido numa realidade francesa.”
Acrescenta depois que a transferência e radicalização destas identidades têm sido apoiadas pela acção de redes sociais que procuram autonomizar tais comunidades de imigrantes da sociedade francesa, o que sucede a partir da prédica de pregadores que pertencem a organizações integristas internacionais, agindo com apoio de alguns estados muçulmanos.
Termina urgindo a promoção de uma cidadania fundada no alargamento das bases de uma educação pública e na defesa dos valores da razão, visando fazer frente a todos os fundamentalismos e garantindo a aceitação dos princípios fundamentais da república francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.
Quem assistiu, horrorizado, aos crimes indesculpáveis ocorridos em Paris e ao sacrifício aberrante que se impuseram os próprios terroristas não pode senão partilhar destes pensamentos de Sami Naïr.
No entanto, uma coisa é partilhar desta análise lúcida, outra é render-se, por via de um relativismo paralisante e hipocritamente moralista, ante as acções dos que se dispõem a agir criminalmente em nome de valores e ideais retrógrados que apenas conduzem a mais submissão e injustiças sociais.
E estes não são apenas os que dispararam ou põem bombas e estão dispostos a morrer, são também quem os financia, arma e anima, continuando a conviver “civilizadamente” connosco.
É na confusão de causas, efeitos e actores que avançam outros fundamentalistas – os nossos – que buscam também impor princípios, ideais e políticas igualmente retrógrados, contrariando assim o esforço alcançado na afirmação de valores de racionalidade e humanização que as nossas sociedades, através de muitas lutas – pesem embora as injustas contradições que nelas subsistem –, têm conseguido firmar.
Não nos iludamos: o que de pior estes crimes podem produzir é a vitória das trevas, qualquer que seja a sua origem e a sua fundamentação religiosa ou ideológica.
Jurista
Escreve à terça-feira