Companhia Maior.  Aqui só mora a força de viver

Companhia Maior. Aqui só mora a força de viver


O espectáculo “Força”, de Filipa Francisco e António-Pedro, que estreou dia 12, foi o mote de uma conversa com estes artistas seniores que não se resignam à idade e prometem uma coisa: não parar.


A Companhia Maior cumpre cinco anos de existência, e celebra-os em palco no Centro Cultural de Belém, a residência que a viu nascer.

É melhor fazer desde já um aviso: esta companhia não é para velhos. Os gestos de caridade e a ideia de inutilidade ficaram de fora da criação da Companhia Maior, em 2010, pelas mãos de Luísa Taveira (directora artística da Companhia Nacional de Bailado) e de Tiago Rodrigues(director artístico do Teatro D. Maria II), no Centro Cultural de Belém. Foi esta a casa “de nascimento” do espaço de criação entre artistas profissionais e amadores – onde só se admitem maiores de 60 anos – que já realizaram uma mão--cheia de espectáculos em Portugal e além--fronteiras.

Tudo começou com uma audição sob a forma de workshop, organizado por Tiago Rodrigues com 14 destes elementos, e que depois se transformou numa reinvenção da história da “Bela Adormecida”. Para o encenador, desafiado aos 33 anos num trabalho tão ambicioso, aquilo que o surpreendeu mais foi “a disponibilidade daquele grupo de saltar para a piscina sem saber se tinha água”, que permitiu consumar rapidamente a criação desta companhia dez dias depois do início do workshop.O profissionalismo era palavra de ordem, e só Tiago Rodrigues faltou uma vez aos ensaios por estar doente. “Foi uma lição, e isto é transversal a todos os encenadores que já trabalharam com estes artistas, a de que o compromisso com um projecto permite ultrapassar obstáculos que parecem intransponíveis.”

Hoje em dia Tiago Rodrigues, que é também membro da direcção, trava-se, ao lado deLuísa Taveira, com uma das lutas mais difíceis, a de profissionalizar o projecto, recolhendo apoios e tentando multiplicá--lo noutras regiões do país, limpando “o preconceito de que trabalhar com esta gente é um gesto de caridade”. Passados cinco anos, o que terá aprendido Tiago Rodrigues com esta gente que não se resigna? “A grande lição é descobrir que quanto mais velhos maior é a capacidade de arriscar. A idade não nos torna resignados”, conclui.

Actualmente são 25 membros. O objectivo principal continua a ser promover o contacto intergeracional, entre criadores novos e intérpretes mais velhos. E mostrar que “esta fase da vida deve ser vista não como um problema, mas como uma parte da solução”, como disse Luísa Taveira nesse ano de criação numa conferência de imprensa.

Seguiram-se horas e horas de ensaios, ateliês, seminários, residências artísticas e um portefólio com alguns triunfos importantes. Em 2014, talvez o ano de maiores conquistas, a companhia fez a sua primeira internacionalização, na MA Scène National, em Montbéliard, França, com a peça “Estalo Novo”, de Ana Borralho e João Galante. Antes, em Outubro, associavam-se à bienal “Artista na Cidade 2014”, desafiando o artista britânico Tim Etchells a escrever um texto original, que deu origem à peça “O melhor e o mais rápido, o pior e o mais triste, o mais longo, o mais complexo, o mais difícil e o mais divertido”, dirigida pelo encenador Jorge Andrade. O encenador recorda “a festa” criada em cena, com os “actores na sua maior elegância”, que mostram “uma certa heroicidade na disponibilidade generosa daquelas pessoas”. E como se resume a força destes actores? “Uma coisa admirável!”, remata.

Neste mês de Novembro, a Companhia Maior lança-se numa nova aventura, que dá pelo nome de “Força”. Uma peça de teatro coreografada por Filipa Francisco e orquestrada musicalmente por António-Pedro, e em que a força é o fio condutor de um exercício experimental em conjunto, de um corpo e de uma orquestra que se cruza e descruza por entre as suas memórias, para se encontrar num caminho único rumo ao futuro. E que futuro?Ficará à responsabilidade de cada um descobri-lo. O destes artistas, que sobem ao palco para mais um trabalho, vai crescendo, passo a passo, de braço dado com a sua história, mas sempre com o desejo de não se resignarem ao preconceito de que deveriam ser postos em prateleiras. OB.I. foi conhecer, no dia anterior e no próprio dia da estreia, estas pessoas, os seus limites e capacidades, e como se pode continuar a querer fazer mais depois de uma vida cheia de experiências. O resultado? Cá está: esta companhia não é mesmo para velhos.

“FORÇA? É DIZER QUE FUI CAPAZ”
Entre o Pequeno Auditório do CCB, onde vão actuar, e os bastidores, os 18 elementos deste espectáculo aproveitam para ir melhorando as marcações e afinando os instrumentos. São 20h00. Nos camarins das mulheres está Celeste Melo. Tem 84 anos e veio parar à Companhia Maior por ter “nascido e desejado o teatro” toda a sua vida. Amante da palavra e da comunicação, foi o avô que a despertou para estas andanças. “Quando eu era pequena o meu avô tinha um baú de madeira que me deslumbrava. Eu podia ser tudo o que saía de lá, punha bigodes, perucas, pintava-me, tudo”, conta. Nos serões com a família, o avô pedia-lhe sempre “que decorasse uns versinhos” e Celeste, como moeda de troca, só pedia uma coisa: “Deixa-me sapatear.” “Era uma loucura, ainda hoje não o faço”, revela.

Mas esse desejo de pertencer e de fazer teatro acompanhou-a regularmente, em grupos teatrais, em participações de curtas-metragens – recebeu o prémio de melhor actriz num festival na Roménia em 2013 – a par de uma carreira na área da estatística e como secretária do conselheiro cultural da embaixada da ex-URSS. “Uma grande honra, era a única portuguesa na altura”, afirma sorrindo. A força para continuar a subir aos palcos “veio da capacidade de ser capaz”, estando agora mais atenta aos seus limites, que se não a impedirem “de estar quieta” não serão obstáculo para novos projectos. Admite que teve algumas dificuldades durante os dois meses e meio de preparação para a peça, mas ultrapassadas essas dificuldades acabou por ter mais uma vitória. É que para Celeste, nesta idade, só há um pensamento que lhe surge na cabeça: “Estamos sempre a ganhar!”, anuncia antes de voltar para o ensaio geral. Quer conhecer uma curiosidade? Celeste apenas se tornou actriz profissional em 2010, quando entrou para a Companhia Maior.

Numa cadeira ao lado, Júlia Guerra abanica-se e olha-se ao espelho. Profissional durante 30 anos na RDP, e com um espólio enorme de apresentações televisivas, locuções, reportagens e produções, agrupou ao currículo a direcção da Casa do Artista durante 11 anos. Agora também por cá habita, desde o início. “Foi mais um desafio da minha vida, vivi toda a minha infância um pouco ligada à arte”, diz, relembrando o pai, que a levou a tornar-se artista e comunicadora por inteiro. É uma “apaixonada pela vida”, e os seus 83 anos pouco incomodam porque “pode fazer tudo o que fazia antes”, nunca esquecendo a saúde, que já pregou algumas rasteiras – dá a si própria a alcunha de ”sobrevivente”. Guarda a fantasia do pai na memória, mas deixa a nostalgia para outra altura, desejosa de “fazer mais espectáculos”. E a morte, terá lugar na sua cabeça? “Não! Espero apagar-me, cha!”, confessa desenhando com as mãos uma explosão para o tecto.

“HAVEMOS NÓS DE CONTINUAR”
“Atenção, por favor, corpo e orquestra, faltam dez minutos para o ensaio geral, venham ter à direcção de cena”, ouve-se num dos speakers no camarim dos homens. Lá dentro, em tronco nu, só de cuecas, estão Carlos Fernandes, Carlos Nery, João Silvestre, Jorge Leal Cardoso e Michel a trocar de roupa – os homens deste espectáculo. Fala-se de política ao mesmo tempo que se contam piadas e se trocam as meias. “O mais importante”, segundo Jorge, que além fazer teatro joga ténis, faz tango e “está a aprender alemão no computador”. Destes homens há quem venha do acordeão ou do sapateado, como o francês Michel, ou do jornalismo radiofónico, como Carlos. Mas a atenção vai para as “bonitas cuecas” pretas do francês, sempre de sorriso aberto. “Ora repara lá como são bonitas!”, diz Carlos Nery – outro dos que levam o teatro tatuado na pele – para Michel. Ohumor sai, por segundos, pela porta, quando os questionamos sobre o que gostariam de fazer em vez do teatro. “Isto”, responde prontamente Nery, acabando de vestir o seu traje preto. E se a companhia acabar? “Havemos nós de continuar!”, chuta Carlos Fernandes para os colegas, entre risos.

Puxamos por minutos um dos mais jovens da companhia, João Silvestre, antes de ser chamado para o ensaio. “Não estou cá desde o início porque quando soube tinha 58 anos, hoje tenho 63 e cá estou de armas e bagagens”, começa por dizer. Filho de uma terra com fortes tradições teatrais, Pernes, no concelho de Santarém, sempre teve o bichinho da representação, mas o pai impedia-o por ser algo efeminado. Aos 16 anos entrou para a Marinha e tudo mudou. “Fui como voluntário para a Marinha e aos fins-de-semana entretinha-me com o teatro.Depois trabalhei no BES e fiz parte do grupo de teatro BEScénico, era uma coisa viciante e faz parte de mim”. Os anos foram passando e João foi juntando oficinas e cursos ligados à televisão e ao cinema.Quando fica sem o teatro “sente a falta” e tenta ocupar-se com outras artes, como a pintura, e a própria solidão. “Gosto muito de estar sozinho, não me faz confusão nenhuma estar parado a olhar para o mar com a minha cadela”, afirma. Oenvelhecimento não é coisa que o aborreça, deu-lhe até mais paciência e tolerância com o passar do tempo, e, claro, o mais importante, deu-lhe “foco”.

“Hoje em dia não me disperso com tanta facilidade”, diz. Sobre a morte “prefere não pensar” porque “o ontem não existe, amanhã também não há, só hoje”, argumenta. Depois deste projecto, mais virão para o ano. Neste momento, João tem mesmo é de correr para não chegar atrasado ao ensaio. “Gostava de correr”, termina o ex-bancário, revelando que esse é um dos poucos desgostos que os seus 63 anos trouxeram.

Nos corredores encontram-se todos com Filipa Francisco e António-Pedro, à espera dos seus artistas para fazer um aquecimento final. “Este ensaio geral vai ter muita força!” deseja Filipa, esfregando as mãos, um gesto imitado por todos os outros para acordar o corpo.Descontraem a cabeça, estendem braços e pernas, fazem de leões. Há quem demore mais a fazer os exercícios ou até quem opte por não fazer alguns. Tudo para recarregar a força que está lá, com os seus limites, mas está lá. Seguiram-se os tradicionais movimentos de boca e os “ooohs” e “aaahs”, que culminam num “Força!” de Carlos Fernandes, repetido pelo grupo. Ah! “E muita merda!”Não se pode desrespeitar a tradição.

Lá passou o último ensaio, “muito melhor que o de ontem”, gritava Filipa aos seus intérpretes do fundo da plateia. António-Pedro definia em poucas palavras aquilo que espera do público no dia da estreia: “Estão no bom caminho, o fim está forte, emocionei-me.”

Despir, vestir, apanhar um táxi, são as tarefas que se seguem para desfrutar do merecido descanso.“Quem quer boleia para a Alameda?”, pergunta António-Pedro. Os “sins” aparecem, ao som de uma qualquer música trauteada por Michel. “Pom pom pom…”, canta, sempre a sorrir pelo palco. E que se mantenha assim.

UM CAMINHO PELO “EU” COLECTIVO
“Tudo partiu da ideia de força, primeiro do colectivo, passando para o individual e voltando ao colectivo, criando uma linha de caminho muito semelhante à que os migrantes fazem hoje em dia”, explica Filipa Francisco no dia da estreia, ao mesmo tempo que assume que sempre desejou trabalhar com a companhia. Este foi o ponto partida que se traduziu do desejo de uma das intérpretes, Iva Delgado, de falar da crise de refugiados no mundo, para que viajasse pelas memórias de cada um através da dança e da improvisação.“Há o Carlos, que adora o seu tapete, a Júlia, que faz perguntas e perguntas, ou a Kimberley Ribeiro, que volta a dançar a “MesaVerde” de Kurt Joos(1932), uma das peças que fez na Companhia Nacional de Bailado”. Todas essas memórias individuais vão gerando um “turbilhão na parte final para que acabássemos por ter o indivíduo e o seu caos numa tentativa de continuar a caminhar”, diz, antes de fazer uma reunião com todos por volta das 17h00. Filipa tem já uma vasta experiência com não-actores. Durante sete anos fez formação com reclusos em Castelo Branco e nos últimos quatro anos tem circulado pelo país com a peça “Viagem” (2011), um espectáculo criado com grupos folclóricos. Desta nova experiência leva uma coisa: “A aprendizagem de tentar preservar a experiência deles para um mundo novo.”

Chega de conversas, está na altura de fazer os últimos acertos nos bancos dos corredores, qual consultório improvisado, para discutir o desempenho e corrigir a orquestra. É que o relógio já bate nas 18h30 e a peça começa às 21h00. E, claro, pedir “menos dramatismo”, aconselha Filipaa Carlos Nery. É que“a força já lá está toda”.

E a música, como foi feita com “não músicos”? Um gongo que nos introduz neste caminho, um acordeão que nos lembra os filmes de Hitchcock, ou as chapas que recordam as tempestades que nos assustam mas nos enchem de energia. É assim esta pequena orquestra que constrói a dimensão sonora em que tudo se fez em conjunto, num processo de autodescoberta constante. Com um background artístico baseado na ideia de que todos podem fazer música, António-Pedro acredita que foi um desafio que “se foi conquistando por se acreditar que era possível” estas pessoas fazerem música. Numa semana de residência, com muita intensidade, acabou por se encontrar a chave para a harmonia desta orquestra: “Encontrámo-nos num dia sem combinar, e estivemos uma hora a improvisar colando ambientes sonoros.” A partir daí passou-se a acreditar que a força da música também poderia triunfar neste espectáculo.

Tudo pronto, estamos a minutos da estreia e o nervosismo ficou na rua. À entrada para os camarins, mensagens e flores de apoio dos vários encenadores. Celeste pergunta: “É o nosso funeral?”Nery, por detrás, sussurra-lhe: “Ainda falta!” Lembramo-nos de SérgioGodinho: “E que força é essa, amigos?” Se quer resposta pergunte a estes artistas, mas atenção – se perder muito tempo, eles já estarão a voar para mais um novo desafio.