A beleza da vida segundo W. Schäuble


Nada melhor do que atribuir a esta esquerda responsabilidades e poder de decisão para que os mitos caiam 


Nunca Wolfgang Schäuble pensou vir a ser uma figura tão ouvida fora da Alemanha. Questionado sobre o que pensava quanto à situação política portuguesa, em que um governo socialista se prepara para assumir funções com o apoio da extrema-esquerda e dos comunistas, o ministro das Finanças alemão respondeu ser normal e típica de uma democracia, adicionando candidamente que “a vida é sempre cheia de incertezas e essa é a beleza da vida”. De facto, tendo em conta que aos 48 anos se viu alvo de uma tentativa de assassinato num comício e perdeu a mobilidade em mais de metade do corpo, e já passou mais de duas décadas numa cadeira de rodas, Schäuble sabe do que fala quando se refere, com uma invejável tranquilidade, às incertezas da vida.

E terá motivos para isso. O ministro alemão sabe que António Costa, que conhece bem dos tempos em que ambos assumiram as pastas do Interior nos governos respectivos, não liderará – porque não quer e porque não pode – um governo frentista, que ponha em causa a posição portuguesa perante os compromissos europeus, desde logo o Tratado Orçamental. Sabe também, como um dos grandes “atlantistas” alemães que é, que a posição de Portugal na sua relação com os Estados Unidos e em relação à NATO não se modificará. E sabe que o investimento alemão em Portugal, bem como a posição alemã de grande fornecedor nacional, são elementos que não está ao alcance de qualquer governo nacional alterar. Logo, a sua tranquilidade é bem justificada.

Então o que inquieta entre nós algumas figuras perante a possibilidade de um governo socialista apoiado no parlamento pelo PCP e pelo Bloco de Esquerda? Basicamente duas coisas. Por um lado, a ameaça de que PCP e, em menor medida, o Bloco de Esquerda, possam ter algo a dizer quanto a decisões políticas reais continua a ser um dos nossos preconceitos de regime. Sucede que metade do país, de Lisboa para cima, ainda acha, com alguma razão, que o PCP quer nacionalizar mercearias e expropriar enxadas (e se calhar um terço dos seus militantes também o crê e é melhor não os desenganar…). Ora nada melhor que atribuir a esta esquerda responsabilidades e poder de decisão para que os mitos caiam – ou perdurem, mas com outra justificação que não a simples emulação da mitologia política do passado.
Por outro lado, entre as poucas centenas de empresários, jornalistas, políticos e afins que decidem o que é “isto”, não há muitos que saibam verdadeiramente o que é o PCP ou o Bloco de Esquerda. Sabem apenas que não se entretêm tanto e de forma tão descarada como os outros a partilhar favores e lugares. E isso é sempre um risco, lá isso é.

PS Num jornal nacional lia-se ontem: “O Rabobank, banco de investimento holandês, voltou a avisar que o programa de um governo PS “provavelmente irá irritar os credores”. É caso para aconselhar esta instituição financeira no sentido de que, se quer mesmo analisar a situação portuguesa e ser levada a sério, limite primeiro as dúvidas que a sua própria fissura semântica possa levantar. E provavelmente espalhar alguma coisa nessa irritação.

PS2 Os ministérios temporários do actual governo estão eivados de um misticismo cruzado com ingenuidade pastoril que anima até o mais insuspeito social-democrata a erguer catanas e desbastar tanta vaidade. Depois de Calvão da Silva e do seu transe místico, também Leal da Costa (quem?… é o ministro da Saúde em gestão) ajustou o seu halo, acha que o melhor ministro da Saúde seria sempre ele próprio e ufana-se nos jornais de se ter apressado a trocar de lugar com Paulo Macedo no carro oficial imediatamente após a sua tomada de posse. Haja decoro e, não havendo, haja silêncio.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa 
Escreve à terça-feira

A beleza da vida segundo W. Schäuble


Nada melhor do que atribuir a esta esquerda responsabilidades e poder de decisão para que os mitos caiam 


Nunca Wolfgang Schäuble pensou vir a ser uma figura tão ouvida fora da Alemanha. Questionado sobre o que pensava quanto à situação política portuguesa, em que um governo socialista se prepara para assumir funções com o apoio da extrema-esquerda e dos comunistas, o ministro das Finanças alemão respondeu ser normal e típica de uma democracia, adicionando candidamente que “a vida é sempre cheia de incertezas e essa é a beleza da vida”. De facto, tendo em conta que aos 48 anos se viu alvo de uma tentativa de assassinato num comício e perdeu a mobilidade em mais de metade do corpo, e já passou mais de duas décadas numa cadeira de rodas, Schäuble sabe do que fala quando se refere, com uma invejável tranquilidade, às incertezas da vida.

E terá motivos para isso. O ministro alemão sabe que António Costa, que conhece bem dos tempos em que ambos assumiram as pastas do Interior nos governos respectivos, não liderará – porque não quer e porque não pode – um governo frentista, que ponha em causa a posição portuguesa perante os compromissos europeus, desde logo o Tratado Orçamental. Sabe também, como um dos grandes “atlantistas” alemães que é, que a posição de Portugal na sua relação com os Estados Unidos e em relação à NATO não se modificará. E sabe que o investimento alemão em Portugal, bem como a posição alemã de grande fornecedor nacional, são elementos que não está ao alcance de qualquer governo nacional alterar. Logo, a sua tranquilidade é bem justificada.

Então o que inquieta entre nós algumas figuras perante a possibilidade de um governo socialista apoiado no parlamento pelo PCP e pelo Bloco de Esquerda? Basicamente duas coisas. Por um lado, a ameaça de que PCP e, em menor medida, o Bloco de Esquerda, possam ter algo a dizer quanto a decisões políticas reais continua a ser um dos nossos preconceitos de regime. Sucede que metade do país, de Lisboa para cima, ainda acha, com alguma razão, que o PCP quer nacionalizar mercearias e expropriar enxadas (e se calhar um terço dos seus militantes também o crê e é melhor não os desenganar…). Ora nada melhor que atribuir a esta esquerda responsabilidades e poder de decisão para que os mitos caiam – ou perdurem, mas com outra justificação que não a simples emulação da mitologia política do passado.
Por outro lado, entre as poucas centenas de empresários, jornalistas, políticos e afins que decidem o que é “isto”, não há muitos que saibam verdadeiramente o que é o PCP ou o Bloco de Esquerda. Sabem apenas que não se entretêm tanto e de forma tão descarada como os outros a partilhar favores e lugares. E isso é sempre um risco, lá isso é.

PS Num jornal nacional lia-se ontem: “O Rabobank, banco de investimento holandês, voltou a avisar que o programa de um governo PS “provavelmente irá irritar os credores”. É caso para aconselhar esta instituição financeira no sentido de que, se quer mesmo analisar a situação portuguesa e ser levada a sério, limite primeiro as dúvidas que a sua própria fissura semântica possa levantar. E provavelmente espalhar alguma coisa nessa irritação.

PS2 Os ministérios temporários do actual governo estão eivados de um misticismo cruzado com ingenuidade pastoril que anima até o mais insuspeito social-democrata a erguer catanas e desbastar tanta vaidade. Depois de Calvão da Silva e do seu transe místico, também Leal da Costa (quem?… é o ministro da Saúde em gestão) ajustou o seu halo, acha que o melhor ministro da Saúde seria sempre ele próprio e ufana-se nos jornais de se ter apressado a trocar de lugar com Paulo Macedo no carro oficial imediatamente após a sua tomada de posse. Haja decoro e, não havendo, haja silêncio.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa 
Escreve à terça-feira