A distância entre Lisboa e Fátima impede-nos de nos encontrarmos pessoalmente. A solução? O telefone, claro, que David aceita rapidamente e com simpatia.
Olá, David! Há quatro anos disseste numa entrevista que se fosses aos Jogos Olímpicos fazias uma tatuagem. Já estás a tratar disso?
Olá! Bem, já pensei no assunto, só que só vou tratar disso depois. Vou fazer o símbolo olímpico.
Então isso vai mesmo para a frente?
Vai, vai! Mas onde é que leste isso? Eu sei que o disse, mas já não me lembro onde…
Num blogue. Na altura até disseste que podia dizer ‘Amor de mãe’…
[Risos.] Não, por acaso não, vai ser mesmo sobre os Jogos Olímpicos de Londres.
Praticas BTT há dez anos. Quando começaste a achar que os Jogos Olímpicos eram um objectivo possível?
Provavelmente em 2009. Eu já sabia que era possível em 2007 ou 2008, mas nunca pensei que pudesse obter grande parte da pontuação necessária. A partir de 2009, quando subi ao escalão de Elite (seniores) e me sagrei campeão nacional logo nesse ano, pensei “Se isto for muito bem trabalhado, é possível”.
Começou por influência familiar, certo?
Os meus primos faziam BTT há muitos anos, eu ainda estava no 4.o ano da escola, tinha nove anos. Aquilo foi uma coisa que me despertou a atenção, porque eu gostava de competição, gostava de natureza, gostava de desporto. Descobri a BTT em 1996 ou 1997, mas só em 2001 é que fiz a minha primeira prova.
E compraste a tua primeira bicicleta sozinho?
Sim. Aliás, a primeira bicicleta que tive de BTT foi dada pelo meu avô, mas para competir ainda não era o ideal, precisava de uma mais fiável. Em 2001 ou 2002 comprei uma bicicleta para competir a prestações. Juntei o dinheiro a arrancar silvas.
O teu pai teve um papel importante, ao dar-te treino.
Na altura eu já treinava muito, mas para dizer a verdade treinava mal e porcamente! Tudo o que era erro eu cometia. Então o meu pai [é professor de Educação Física] começou a dar-me uma certa orientação de treino: “Olha, fazes isto, fazes aquilo e tal e coiso.”
O facto de o teu pai ser professor de Educação Física teve alguma influência em escolheres o curso de Ciências do Desporto ou foi uma decisão completamente independente?
Não posso dizer que foi completamente independente, até porque, tendo um pai que é professor de Educação Física, os valores desportivos são sempre incutidos, quer se queira quer não. Agora se eu podia ter escolhido outra coisa? Podia, mas sempre gostei de desporto e dentro das profissões possíveis era aquela que mais se adaptava aos meus gostos.
Tiveste estatuto de alta competição durante o curso?
Não. O único ano em que o tive foi quando já estava a acabar o mestrado, foi uma completa ironia. Pensei: “Bem, precisei do estatuto desde que entrei para a faculdade e agora que já acabei a licenciatura e estou no mestrado ele aparece!”
Sentes muito essa falta de apoio? Já disseste uma vez que quase odiavas o futebol por ter tanto apoio e as outras modalidades não.
Não odeio o futebol, ele tem a sua importância, mas todo aquele apoio exacerbado que se vê em Portugal não se vê nos outros países com cultura desportiva. Aqui todas as capas de jornais desportivos durante o ano são sobre futebol. Bem pode haver um atleta a ser campeão da Europa na sua modalidade… Basta um clube contratar um jogador qualquer de um país longínquo, para isso ser capa. Acho isso ridículo! E ver estas mordomias para o futebol enquanto outras modalidades não têm qualquer apoio deixa-me chateado.
A profissionalização seria o ideal, suponho. É possível?
Eu comecei a leccionar no ano lectivo 2010/2011, uma actividade a recibo verde. Este ano, quando chegou Fevereiro, tive de competir muitas vezes lá fora. Se eu não dava aulas, não recebia, por isso tive de abandonar a actividade de professor. Entretanto consegui arranjar uns patrocinadores que me ajudaram a fazer esta época, mas todo o apoio que eu tive foi para fazer provas no estrangeiro e conseguir os pontos para a qualificação olímpica. Não foi nada para enriquecer! [Risos.]
Nunca puseste a hipótese de ingressar no ciclismo de estrada?
Já pensei várias vezes nisso, mas em 2009 eu já estava com os olhos postos nos Jogos Olímpicos, não ia no último ano abandonar a modalidade e deixar a coisa a meio. Já pensei nisso, claro, mas se eu tenho um objectivo, tenho de o cumprir. A minha motivação neste momento é só a BTT. Gosto de estrada, já competi em estrada e é uma modalidade da qual gosto mesmo muito, mas o futuro… logo se vê.
Esta falta de apoio leva a um certo desenrascanço. Já passaste por algumas situações dessas, não foi?
A primeira vez que fui fazer uma prova em autonomia, foi em autonomia total! Ou seja, apenas entrei num avião com a bicicleta, aterrei em Istambul, aluguei um carro e fui para a prova. Ninguém falava inglês, só o básico. Eu a pedir uma massa bolonhesa e ninguém percebia nada. Lá fui ao Google, tal tal tal e mostrei as coisas. “Oh, yes, yes!” e lá se resolvia. Uma vez fui com o seleccionador para a Turquia, uma prova já perto do Irão e do Iraque, onde não falavam inglês. Para pedir uma massa com frango tive de imitar uma galinha, porque eles não entendiam nada! E aí perceberam: “Ah, yes, chicken, chicken!” Mas isso foi algo que me ajudou a ser mais forte, mesmo a nível psicológico. Quando nós passamos por essas coisas completamente sozinhos acabamos por ter um estofo completamente diferente. Aquelas coisas que são grandes problemas passam a ser mais pequenas.
Também já enfrentaste algumas situações mais complicadas. Em 2010, em Offenburg, não enviaram os teus pontos do campeonato nacional e partiste 50 lugares atrás do que devias. Este ano, na Turquia, sinalizaram mal o trajecto, o que provavelmente te prejudicou. Sentes algum amadorismo da parte das organizações?
Já não me lembro qual foi o problema para não terem enviado os pontos… Sei é que quando lá cheguei me deram o dorsal 136, quando eu sabia que ia ser o 70 e tal. Em BTT isto acaba por ser complicado, porque se arrancamos muito de atrás é complicado chegar à frente. Em Portugal, felizmente, já não se vê esse amadorismo. Nós temos provas cá com um elevado nível de organização. Agora na Turquia, por exemplo, aquilo é uma casa a arder!
Mas também tens uma grande capacidade de superação, porque já duas vezes competiste doente ou com problemas de saúde e conseguiste bons resultados. Foi o caso do Campeonato do Mundo em 2004 [teve uma gastroenterite] e do Campeonato Nacional em 2011 [teve uma infecção pulmonar].
A única coisa que me levou a alinhar no campeonato de 2011 foi que aqueles pontos contribuíam para a pontuação para os Jogos Olímpicos e eu era o atleta mais pontuado. Se eu não competisse, eram pontos que nunca mais iríamos ver e a participação [nos Olímpicos] ficava hipotecada, por isso é que fui. Acabei em primeiro.
Estás habituado a fazer sacrifícios para conseguir resultados. É verdade que a tua última passagem de ano foi passada na cama?
Foi uma passagem de ano altamente, foi espectacular! [Risos.] Tinha uma prova na Turquia a 1 de Janeiro e, tendo uma prova no dia seguinte, era minha responsabilidade não ir festejar o ano novo e estar na cama a descansar. Eram 11 e meia e estava deitado!
Bem, tu e as passagens de ano… Já de 2009 para 2010 houve outra história, não foi?
Sim. Eu parti a perna em Novembro e fui operado. Quis provar a mim mesmo que era capaz, porque a lesão foi muito grave por ser próxima do joelho. Então na passagem de ano fiz questão de montar a bicicleta e pedalar. Até porque já tinha sido campeão nacional e não queria perder esse título.
Foi uma questão simbólica, então.
É mesmo essa a palavra, simbolismo!
Dizes que o teu forte é a parte física e não a parte técnica. Sentes que podes ser prejudicado com este circuito olímpico, em Hadleigh Farm?
Aquele circuito é muito específico, é 100% artificial, como nunca se viu em BTT. É um pouco físico, porque as subidas são mais físicas que técnicas, mas há certos pontos da pista onde é extremamente técnico, sim senhora. Mas é uma questão de ir lá testar e ver o percurso.
Eu digo isto porque o seleccionador nacional, Pedro Vigário, disse que é “um circuito que não agrada aos ciclistas, uma vez que privilegia o espectáculo, através da exigência técnica, descurando um pouco a dureza física.” Concordas?
Sim, concordo, porque o percurso foi feito para ser “tv-friendly”. É muito aberto e dá para as câmaras fazerem um bom trabalho a acompanhar os ciclistas, o que normalmente não acontece. É técnico? É. É artificial? É. É físico? Não tem uma dureza em termos de altimetria [elevação do terreno] como uma competição da Taça do Mundo, mas é muito intenso. São os Jogos Olímpicos, vai ser sempre a fundo até ao fim!
Já disseste que o teu objectivo é conseguir ficar no top 30. Achas possível um lugar bem mais acima?
É complicado… O meu objectivo é saber que deixei tudo na pista. Quem dá aquilo que tem a mais não é obrigado. Em termos de número, o top 30 seria muito bom. Não digo que o farei, mas já bati várias vezes atletas que estão lá, que não são melhores que eu e de países bem mais cotados. Não tenho medo de ninguém, não é? Mas tenho é de chegar lá e conseguir fazer uma prova sem azares e aí terei um bom resultado. E um bom resultado para mim é o top 30.
És de Fátima e em conversa disseste ao jornal “Record” que és sobrinho-bisneto dos pastorinhos Jacinta e Francisco…
[Interrompe.] Sim, mas não sou católico, ao contrário do que eles lá disseram!
Sentes que por seres de Fátima te ligam indirectamente à Igreja Católica?
Sim, essa situação do jornal apenas é a confirmação disso [risos]. Aliás, às vezes em prova tenho uma alcunha, que é justamente ‘O Pastorinho’, por ser de Fátima.
Agrada-te ou não achas muita piada?
Até acho engraçada, não tenho qualquer problema em que me chamem isso!