Fuga para a vitória. Onde nasce a palavra herói? É aqui na Rua Sholudenko


Aeroporto de Kiev, 28 de Junho. Admitimos que já tínhamos saudades de ser roubados, escandalosamente roubados. Aqui a negociação de um táxi é um drama. Na loja oficial, digamos assim, é 310 uah. Achamos piada ao requinte do trezentos… e dez (qualquer coisa como 31 euros, e reforçamos o salário mínimo na Ucrânia de 670).…


Aeroporto de Kiev, 28 de Junho. Admitimos que já tínhamos saudades de ser roubados, escandalosamente roubados. Aqui a negociação de um táxi é um drama. Na loja oficial, digamos assim, é 310 uah. Achamos piada ao requinte do trezentos… e dez (qualquer coisa como 31 euros, e reforçamos o salário mínimo na Ucrânia de 670). Saímos para a rua à procura de um preço mais convidativo e levamos com 400. ‘Pera, ‘pera, acho que estou a ouvir alguém a rir-se nas minhas costas. És tu, Mutley? Não, afinal é um outro taxista que me oferece boleia por 200. Um roubo, vá, mas consentido.

O destino é a rua Sholudenko. Ó amigo, aquela que cruza a Marshala Rybalko. Paralela à Vyacheslava Chornovola. Mas então… Rua Sholudenko, aí vamos nós. A viagem demora uns 20 minutos e o homem fala pelos cotovelos. Na língua dele, claro. A única expressão conhecida é why. Repete-a vezes sem conta. Porque é que queremos ir a esta morada? Quando chegamos, percebemos a ideia. É uma avenida grande e larga. No meio, um estádio completamente desfeito. Não tanto como o Vidal Pinheiro mas parecido. Abre-se o portão e vemos balizas de um lado e do outro, mais pedaços enormes de lama misturados com relva. Não tão agressivo aos olhos como aquele Sporting-FC Porto em Janeiro de 1996 (bis de Domingos). Também constatamos as bancadas de pedra. Ah, isto parece mas é o Inatel. Mas não estamos no Porto, nem no Campo Grande, tão pouco na Avenida do Brasil. Isto é Kiev, Ucrânia, e entrámos no estádio onde a palavra herói é para ser levada a sério. Arriscamo-nos até a dizer que o significado de herói terá mesmo nascido aqui, há quase 70 anos.

Tudo começa a 19 de Setembro de 1941, quando Kiev é ocupada pelos nazis. Nos meses seguintes, a cidade é arrasada e os seus habitantes arrastados de suas casas. Não podem trabalhar e vivem na absoluta indigência. Josef Kordik, nascido na Checoslováquia, chega a Kiev em 1914 ao serviço das forças armadas austro-húngaras durante a 1ª Guerra Mundial e é gravemente ferido. Recupera lentamente até estar a cem por cento mas nunca mais sai de Kiev. É recrutado como espião pelos alemães, ao mesmo tempo que tem a função de abrir uma padaria com 300 funcionários para fazer 50 toneladas de pão/dia e alimentar os tais mendigos. Um deles é Nikolai Trusevich, antigo guarda-redes do Dínamo Kiev.

Homem austero e severo, Kordik é também um apaixonado pelo futebol. Quando vê o seu ídolo a viver na rua, dá-lhe tecto e comida. Finta por assim dizer os nazis com o argumento de precisar dele como ajudante naquelas madrugadas intermináveis. Nas conversas entre ambos, fala-se muito de futebol, desta e daquela defesa, do jogo x e do jogo y. Até que Kordik tem uma ideia: e se Trusevich procurasse nas ruas de Kiev pelos restantes companheiros de equipa?

Aceite o desafio, Trusevich só encontra oito companheiros do Dínamo Kiev e ainda três jogadores do arqui-rival Lokomotiv Kiev. Juntos, comem e dormem na padaria de Kordik a troco de 12 horas de trabalho/dia. Continua a falar-se de futebol. Cada vez mais. E se houvesse um campeonato para animar as pessoas? A ideia não é do padeiro checo nem dos jogadores de Kiev, é das tropas alemães a pensar no desporto como forma de entretenimento para acalmar os mais insatisfeitos pela subjugação nazi. Cria-se então um campeonato com jogos aos domingos. Os jogadores escolhem o nome FC Start e iniciam uma era invencível. Jogam de vermelho (simbólico), com camisolas encontradas num armazém abandonado (não, não vamos pedir ao taxista para nos guiar até lá senão somos roubados). A 7 de Junho de 1942, o primeiro jogo. Apesar de cansados pelo trabalho invisível na padaria durante toda a noite, despacham os militares húngaros por 6-2. No dia 5 de Julho, 11-0 aos militares romenos (uns e outros, aliados dos nazis). A 12 de Julho, 9-1 à equipa militar dos caminhos-de-ferro. A coisa começa a dar para o torto quando uma selecção do exército alemão é vergada ao peso de uma derrota impensável por seis-zero.

A fama do FC Start espalha-se inevitavelmente e é porta-estandarte da superioridade daquele pedaço de território ucraniano em relação aos invasores. Os nazis estão incomodados e contratam à pressa a conceituada equipa húngara MSG Wal, reputada como invencível. Ou talvez não… A 19 de Julho, 5-1. Querem desforra? Okay, mas depois não se queixem está bem? São aviados (3-2) no dia 21 de Julho. Os nazis estão mais que preocupados: tem de haver maneira de travar este ascendente desportivo que alastra perigosamente. É a altura de ir a jogo com a Flakelf, a equipa alemã da 11ª esquadra utilizada como instrumento de propaganda de Hitler.

A 6 de Agosto de 1942, o Flakelf leva um cabaz de 5-1. Berlim toma conhecimento da situação de euforia à volta do FC Start e pede desforra. Olha-me estes!, devem pensar devem! Na tarde de 9 de Agosto, o estádio Zenit (este aqui, o da Rua Sholudenko) enche-se como nunca. Mais de duas mil pessoas pagam bilhete a um preço considerável (já aqui…), no valor de dois cigarros! Há guardas alemães em todo o lado, armados com espingardas e cães. Antes do jogo da morte, o árbitro (ups, um oficial da SS, desculpem o equívoco) entra no balneário dos ucranianos. “Respeitem as regras e levantem o braço”, que é como quem diz façam a saudação. Os alemães chegam num autocarro e equipam-se num balneário decorado por e para eles. Os ucranianos vêm a pé para o campo e equipam-se num improvisado balneário ao lado da casa do vigia.

As equipas estão perfiladas, os alemães cumprem o ritual com o Heil Hitler, os ucranianos nem tanto. Levantam o braço, sim, mas gritam Fizculthural, expressão soviética para a cultura física. De camisa branca e calção preto, os alemães marcam primeiro mas sofrem dois golos até ao intervalo. Nesses 15 minutos, um oficial da SS (que não o árbitro) avisa os vencedores: “Vocês até podem ganhar mas reflictam nas consequências.” Começa a segunda parte. Acaba o jogo. Cinco-três para os bons. No último minuto, o avançado Klimenko isola-se e finta o guarda-redes. Com a baliza aberta, dá meia volta e chuta a bola para o seu meio-campo. Que desprezo, que superioridade. É o delírio, os populares agitam-se dentro e fora do estádio, os alemães são humilhados, o MVP é entregue (ficticiamente, claro) a Klimenko.

Os alemães não querem criar um alvoroço desnecessário e deixam passar uma semana. No domingo, 16 de Agosto, o FC Start aplica um robusto 8-0 ao Rukh, uma equipa de outros ucranianos. É a nona vitória consecutiva. A última. A Gestapo invade a padaria e leva para interrogatório os jogadores do FC Start, sob acusação de espiões e terroristas. A esta tragédia, só escapam Goncharenko, autor de dois golos no 5-3, e Sviridovsky, o lateral-direito. Naquela altura, os dois não estão na padaria. Os restantes nove elementos são torturados, privados de sol e enviados posteriormente para campos de concentração. Acabam todos por morrer, incluindo o guarda-redes Trusevich, fuzilado pelas tropas alemães enquanto grita “a equipa vermelha nunca irá perder.”

Ainda hoje, os espectadores do 5-3 do FC Start à Flakelf, entram gratuitamente em dias de jogo do Dínamo Kiev. Nas escadarias do clube, vê-se um momento com a inscrição “aos jogadores que morreram com a cabeça levantada ante o invasor nazi” a recordar aqueles heróis, os indomáveis heróis que ninguém pôde derrotar dentro de campo. São eles Nikolai Trusevich, Ivan Kuzmenko, Pavel Komarov, Alexei Klimenko, Nikolai Korotkykh, Georgy Timofeyev, Vasily Sukharev, Feodor Tyutchev, Makar Goncharenko, Mikhali Putistin e Mikhali Melnik.

A versão hollywoodiana desta história é o Fuga para a Vitória, de John Huston, com golo de bicicleta de Pelé e defesa de Stallone a um penálti alemão no último minuto. A versão local chama-se Match, produção russo-ucraniana de 12 milhões de euros, com Sergey Bezrukov na pele do actor principal. “É um filme sobre o guarda-redes do FC Start, o jogador que encontrou todos os outros, o verdadeiro herói fuzilado cobardemente pelas costas vestido à FC Start”, transmite o realizador Andrei Maluykov aos jornais ucranianos. “Infelizmente, tivemos de usar um campo minúsculo nos arredores de Kiev porque o do jogo de 1942 está impraticável.”

Sim, há demasiados prédios à volta, as pessoas fazem jogging e os adolescentes esgrouviados fumam deitados no banco de suplentes. Impraticável, é verdade, mas com a aura do heroísmo presente. Sempre.