Borscht é bom. Já percorremos a Ucrânia quase toda (é uma piada claro, isto é um território imenso; só fomos a Lviv, Donetsk, Kharkiv, Odessa e Kiev) e o borscht nunca é igual. Há maneiras e maneiras de o fazer, todas elas de nos deixar a transpirar. E a suspirar por mais. Aquele creme de leite com alho e cebola no meio da sopa de beterraba é uma delícia. De chorar por mais. É o borscht, a sopa tradicional da Ucrânia. Estamos a vê-la ao longe, no bar da Arena de Lviv, quando os jogadores dinamarqueses começam a sair do treino. É a véspera do jogo com a Alemanha, para a terceira jornada do grupo de Portugal.
A nossa ideia é falar com Nicklas Bendtner. Não porque tenha sido o primeiro jogador a bisar num Europeu e a perder esse jogo (Portugal-Dinamarca, 3-2), porque para isso basta recordar Rui Jordão vs. França em 1984, e também não porque tenha marcado seis golos a Portugal em apenas cinco jogos. Queremos falar com Bendtner porque o achamos especial. Até que ponto, isso não sabemos. A nossa experiência remonta a um Arsenal-Leyton Orient, em Março do ano passado. Viajemos no tempo, então.
No Emirates, há fish and chips. E franceses que nunca mais acabam. Não falamos dos jogadores (que também os há, naquela táctica wengeriana de construir um plantel francófono a todo o custo, com compatriotas excepcionais e outros de gosto duvidoso), mas sim dos adeptos. Ao nosso lado, sentam-se cinco. Primeiro, são simpáticos porque abrem a boca para se rir. Depois entusiasmam-se e começam a abrir a boca para falar. My God. Ou devemos dizer My Goat? Eles falam um inglês pior ainda que o do polícia francês do Allo Allo. E faltam 90 minutos para acabar o jogo. Bad news. Ou devemos dizer “bad nose”?
Entram em campo as duas equipas, que curiosamente são ambas de Londres. Não é nenhuma curiosidade por aí além, porque há 13 clubes londrinos (e não clubs, que esses há muito mais, sobretudo no Soho) nas quatro divisões profissionais inglesas, mas é um pormenor a reter. Até porque de Brisbane Road, casa do Leyton Orient, até ao Emirates, distam 6,6 quilómetros. Temos um mapa se quiserem dar uma vista de olhos. Ou devo dizer “I have a mop if you would like to take a leak?” Prossigamos. Não é de estranhar por isso a presença maciça de adeptos da equipa visitante. Mais entusiastas que os do Arsenal. E, a determinada altura, mais ruidosos. Porque o dinamarquês Nicklas Bendtner festeja um golo com a mão no ouvido direito como quem diz ‘vá, agora assobiem’. Não se faz isso a ninguém, muito menos a uma equipa inferior que já perde 2-0 aos 20 minutos. Mas Bendtner não percebe as subtilezas do futebol. E ainda bem. Porque começa aí um outro jogo, mais divertido.
Cada vez que Bendtner toca na bola, seja para fazer um lançamento lateral ou rematar à baliza, os adeptos do Leyton Orient assobiam-no tanto, mas tanto, que até se ouve a 6,6 km de distância. Mas o desmiolado Bendtner não está minimamente preocupado e marca mais duas vezes (hat-trick, como aquele ao FC Porto, nos 5-0 para a Champions da época passada). Não te preocupes Nicklas. Ou devo dizer “do not weary, Nicklas”? Afinal, o homem tem um trabalho para fazer. Ou devo dizer: “he has a dirty to do”? Bem, whatever, já passa das seis e meia (half pissed sox) e está uma noite escura (it is a dick night). O jogo está fraco, de sentido único, e temos fome. O fish and chips é caro. Se ainda fosse borscht, dividia com os nossos amigos aqui do lado. Aqueles… São cá uns personagens. Sim, daquela série famosa Yellow, yellow.
Pronto, está feita a introdução. De volta a Lviv, 2012. Queremos falar com Bendtner para saber se é desmiolado ou se é simplesmente assim por natureza. E não é que…
Boa tarde.
… [estamos mesmo à frente dele mas Bendtner está a dar um autógrafo numa camisola vermelha da Dinamarca, curiosamente com o seu nome nas costas]
Nicklas, boa tarde?
Estás a falar comigo? Tudo bem? Como vais? És de onde? [mas afinal quem é o jornalista aqui?]
Sim, tudo bem. Sou de Portugal.
Aaaaah, sorry to hear it.
What? Mas perdeste connosco.
Achas que não sei? Mas vamos recuperar. Acabaremos o Europeu em grande, garanto-te.
Mas amanhã é o jogo com a Alemanha.
Okay, bem sei que a Alemanha é daquelas selecções que joga sempre, sempre mas sempre com a mesma seriedade e competência. Mesmo tendo ganho a Portugal e à Holanda, vai entrar em campo para ganhar, como se precisasse dessa vitória para passar aos quartos-de-final, mas nós temos os nossos truques.
[rimo-nos por simpatia, não por gozo mas Bendtner…]
Ai agora ris-te? Duvidas do nosso valor, é?
…
Estás a ver aquele ali? [aponta-nos para um adepto lá ao longe com uma camisola da Dinamarca a dizer Bendtner]
Sim, vejo.
Aquele é um dos nossos truques.
O adepto?
Tudo junto. Tens de ver o quadro completo: a camisola vermelha, o símbolo da Dinamarca, a força dos adeptos e o meu nome. Juntos, vamos dar que falar. Aliás [começa a sorrir, depois abre a boca a rir-se], só continuo a falar contigo se me prometeres publicares esta entrevista no dia da final, ok?
Mas o meu jornal não sai ao domingo. É de segunda a sábado.
Então sábado, véspera da final. O importante é que saia nesse fim-de-semana.
E a final é entre…?
Dinamarca e escolhe tu a outra selecção.
Que confiança, hein?! [na Primavera de 2010, um psicólogo visita o Arsenal e mede a auto-estima a todos os jogadores de 1 a 9; Bendtner tira um 10!]
Se não formos confiantes, estamos aqui a fazer o quê? Diz-me. Achas que entro em campo a temer este ou aquele defesa? Não, nada disso. Entro sempre em campo a pensar que sou melhor que eles. Se duvido de mim, não tenho hipótese de o superar e o desporto é isso mesmo, superação individual.
E se falhares?
Tenho sempre mais uma oportunidade. E mais uma e outra e outra…
Isso é inato?
O quê, ser autoconfiante ou bom em todos os desportos?
[risos] Nem sabia que eras bom em todos os desportos.
É só escolher: ténis, basquetebol, andebol, voleibol, futebol. Desde pequeno que tenho essa mania de ganhar a toda a gente.
E escolheste o futebol porquê?
Queres melhor emprego que futebolista? Eu, pelo menos, sinto-me realizado. Como o homem mais feliz do mundo, nos treinos e nos jogos. Divirto-me a fazer o que quero. Tenho um emprego do caraças [one hell of a job]. Sempre o quis, sem pensar nas consequências. Quando éramos mais novos, a gente divertia-se a jogar em terrenos baldios o dia todo. Comprávamos bebidas e jogávamos, jogávamos, jogávamos. Para lá do cansaço até.
…
Ténis de mesa e skate.
Desculpa? [assim de repente, isto parece borscht de letras; desculpem, sopa de letras]
Esqueci-me de mencionar ténis de mesa e skate na lista dos desportos.
Mas skate não é prejudicial para a saúde de um futebolista?
Agora já não ando de skate. Quando era miúdo, sim. Adorava. A emoção, a adrenalina de descer, de curvar, de cair.
Caíste muitas vezes?
Ohhhhhhhh, perdi a conta. Mas nunca desisti, sabes? Esse é o segredo. Insistir, insistir, insistir. Nunca desistir. É como tudo na vida, acho… Se caíste, levanta-te. E tentas outra vez. Claro que não vale ir sempre contra a mesma parede. Convém contorná-la, ultrapassá-la. Eu vou conseguir, eu vou conseguir. Confiança, sobretudo muita confiança.
Okay, se confiares em mim, prometo-te que a entrevista sai no sábado 30 de Junho, véspera da final. Não te posso garantir é que seja Dinamarca vs. outra selecção.
Tu fazes a tua parte, nós fazemos o resto.
Pois.