1. A vida, por vezes, surpreende-nos. Depois de publicado o texto da semana passada, assisti à projecção do filme de Ivano di Matteo “I Nostri Ragazzi”.
Aparentemente, nada parece ligar o tema daquele texto e o argumento deste filme. Todavia, este não pode senão prolongar a reflexão que começámos há uma semana.
A história dos factos que enquadram a trama do filme é simples na sua brutalidade: dois adolescentes, um rapaz e uma rapariga, filhos de pais da classe média alta e primos entre si, matam, sem nenhuma justificação plausível, no final de uma festa bem regada e bem fumada, uma sem-abrigo que encontram no caminho para casa.
Estes adolescentes, cujos pais são irmãos, convivem regularmente na casa de um e do outro, e o rapaz parece ser dominado – talvez por paixão escondida – pela prima.
O pai do rapaz é cirurgião pediatra num hospital e dedica-se a tratar e recuperar crianças traumatizadas: as outras crianças.
O pai da rapariga é um conhecido advogado criminal que defende eficientemente os seus clientes e paga a sua ausência habitual de casa com presentes caros. A mãe do primeiro é guia de museu com formação superior e, embora superprotectora do filho, quando em casa isola-se, subjugada à televisão. A mãe da rapariga morreu e ela vive com o pai, com a sua nova mulher e com uma irmã deste casamento, uma bebé que é centro das atenções.
Descoberto o crime e a sua autoria, primeiro pela mãe do rapaz e depois pelo pai da rapariga – a televisão mostrou um vídeo de uma câmara de vigilância –, surge o verdadeiro tema do filme: como podem aqueles pais conviver com tais filhos que, tendo confessado em família o crime, não parecem mostrar sequer qualquer tipo de sentimento de culpa e arrependimento.
2. O problema do filme centra-se, então, no verdadeiro murro no estômago que os pais recebem quando confrontados com tais factos e, pior, com a atitude displicente dos filhos que, friamente, continuam a levar uma vida normal, como se nada de grave tivesse acontecido e coubesse unicamente aos pais evitar e resolver, se necessário, as consequências dos seus actos. O quadro em que agem as personagens que os pais escolheram para si não pode, pois, perpetuar-se por mais tempo.
Por via de factos que de alguma forma lhes são estranhos – e, de certa maneira, imprevisíveis –, as personagens que compuseram para si e os cenários que erigiram para os que os circundam por perto não podem mais manter-se sem que uma qualquer atitude radical deva ser tomada. Todo o quadro de referências que organizou as suas vidas e a das famílias está assim em causa e, pensem todos o que pensarem, actuem todos como actuarem, nada parece poder recompor-se pessoal e socialmente. Os problemas daqueles filhos – e, portanto, o dos seus pais – nasceram num outro momento que é já inalcançável: sobram apenas as consequências. Por isso, o filme só pode terminar abruptamente.
3. Com a devida diferença entre tragédia e drama, acontece assim, também, na vida das instituições e das sociedades. A sua vida é moldada por factores para os quais muitos responsáveis contribuem, não querendo atentar a tempo nas consequências. Ante o desabar – só para eles inesperado – dos cenários que já não são reais, reagem, ainda assim, com posturas hirtas, de modo a prolongar um guião já sem sentido. A realidade é, contudo, sempre mais forte do que os cenários que a escondem, fixando-se a sabedoria e a coragem, precisamente, em saber agir e reagir ante ela com a coerência dos princípios, e não de acordo com argumentos bafientos e desonestos, apenas capazes de projectar mensagens trágicas e falaciosas.
Jurista
Escreve à terça-feira