Pedra furada. Este galo é diferente, canta jazz

Pedra furada. Este galo é diferente, canta jazz


António Herculano é campeão pela oitava vez do concurso do galo assado em Barcelos. O B.I. empanturrou-se à grande e à minhota com as suas histórias salteadas com grelos e arroz de miúdos.


Chá branco? Isso existe? No meio de histórias mil, António Herculano esboça uma, duas interrogações. Chá branco, tem a certeza? Pronto, três interrogações e não se fala mais disso. Chá branco no Pedra Furada? Essa é boa, suspira o co-proprietário do restaurante mais famoso do Minho, quiçá até de Pedra Furada. Sim, Pedra Furada é o nome de uma terra minhota colada a Barcelos, e também do restaurante. A sintonia dá-se há 20 anos, quando o restaurante assumiu o próprio nome da freguesia. Pedra Furada porquê? Conta a lenda que a mártir cristã Santa Leocádia foi sepultada viva e conseguiu furar com a cabeça a pesada pedra do seu túmulo – instalada junto à igreja paroquial.

É noite cerrada, não vislumbramos a igreja, só temos olhos para o Pedra Furada. Prometem-nos uma noite gloriosa, daquelas à moda antiga. Estaciona-se o carro no parque e entra-se pela porta das traseiras. Que galo. Pois é, galo. Assado, acrescentamos nós.Quando o bicho chega à mesa,António Herculano ainda está como que amuado connosco. E com razão.

Então se nós o fintámos com uma entrada pelas traseiras em vez de o confrontarmos pela porta principal, onde mora um cuidado espaço cheio de cartas, envelopes e escritos de todo o mundo, embelezados pelo jazz. Aquilo sim, é música para os nossos ouvidos. De repente ouvimos Miles Davis, Diana Krall ou Nat King Cole. Inesquecível. Tudo isto se passa no restaurante Pedra Furada, na freguesia de Pedra Furada. É ou não é fascinante?

É, claro que sim. E ainda nem falámos do galo. Esse malandro (o arroz). É a receita do sucesso, oito vezes campeão nos dez concursos anuais já promovidos pela câmara. O último título chegou há uma semana.

Se isto fosse futebol, e a fazer jus à cor clubística de António Herculano, seria mais ou menos assim: “Eusébio recebe a bola no seu meio-campo e avança como se fosse um extremo. Passa um. Dribla outro. Finta o terceiro. Tabela com Simões, sai-lhe o guarda-redes aos pés e é goloooooo!” Perdão, golo ou galo?

A expectativa é imensa. A multidão acomoda-se na cadeira. A faca entra no centro do galo… E já está tudo comido. O galo é daqui, e estou com a mão esquerda a puxar a orelha esquerda, em sinal de aprovação. Tenro, delicioso. De chorar por mais. É tudo aquilo com que sonhamos quando o vemos na televisão. Melhor ainda, até. Porque há um arroz (esse malandro) a condizer. E porque temos (ah, agora sim!) António Herculano ao nosso lado, a falar connosco de história minhota, portuguesa, europeia, mundial, universal. É um homem castiço, de olhar vivo, memória prodigiosa e cultura ilimitada.

Cada carta é uma história, cada envelope um pormenor, cada galhardete uma cara.De um qualquer cidadão do mundo, seja espanhol seja japonês, francês ou australiano, holandês ou vietnamita, inglês ou argentino. Que Torre de Babel, Dios mío, mon Dieu, mioDio. Um fartote de emoções sem igual. Se não acredita, veja lá bem isto: um jovem alemão entra no Pedra Furada, a caminho de Santiago, bate-se com um galo (atenção, também há bacalhau à minhota com postas de três dedos e rojões da D. Angelina, uma das irmãs de António Herculano; a outra chama-se Madalena). Dizíamos, um alemão chega, almoça e debruça-se sobre o balcão antes de partir para escrever o que lhe der na cabeça.De repente, surpresa, reconhece o tio.Sim, o tio. Qual é a probabilidade de dois alemães conhecerem o Pedra Furada através do palato?

Ou aquela em que uma canadiana entra pela porta principal (sim senhora, ela é que a sabe toda) e não passa daí.E então? O som é abafado pela voz de Diana Krall. Muito bem, renovamos o “e então?”.

A dita cuja andou com a cantora na escola primária e nunca, nunca mesmo, estaria à espera de a encontrar, por assim dizer, num restaurante no cimo de Portugal, a meio do caminho de Santiago.

Ou ainda a vez em que uma californiana e um dinamarquês se cruzam na Pedra Furada.Daí a um ano, António Herculano recebe uma carta. Lá dentro, uma fotografia do bebé de ambos. Só mais esta, vá: um belo dia o carteiro entrega-lhe uma carta com remetente dos EUA e com um galo de Barcelos estampado na frente. E ainda há… Já não dá, não dá mesmo. Já não conseguimos reter mais nada. Ele é pão, ele é galo, ele é arroz com miúdos, ele é batatas assadas, ele é grelos, ele é recheio.Ele é cartas, ele é envelopes, ele é notas de todos os países e mais algum, ele é galhardetes, ele é jazz. Não, não dá. Só se empurrarmos tudo com chá branco.