“Ninguém falou de radiação”. O desastre de Chernobyl segundo a Nobel da Literatura

“Ninguém falou de radiação”. O desastre de Chernobyl segundo a Nobel da Literatura


Tradução portuguesa de “Vozes de Chernobyl”, uma recolha de depoimentos sobre a catástrofe nuclear de 1986 na actual Ucânia, será publicada em Janeiro de 2016 pela Elsinore.


26 de Abril de 1986. Uma anomalia inesperada provoca várias explosões no reactor 4 da central nuclear de Chernobyl, o qual acaba por entrar em combustão. Ninguém sabe como lidar com o problema. Os bombeiros são enviados para o local sem qualquer tipo de protecção, ficando expostos a um nível de radiação letal.

“Estavam sempre a desmaiar, e foram entubados. Os médicos estavam sempre a dizer-lhes que eles tinham sido contaminados com gás. Ninguém falou de radiação. E a cidade foi imediatamente inundada com veículos militares, e todas as estradas foram encerradas. Os elétricos deixaram de circular, e os comboios também. Andavam a lavar as ruas com um pó branco qualquer. Perguntava-me como iria para a aldeia no dia seguinte, para comprar mais leite fresco. Ninguém falava da radiação. Só o pessoal militar usava máscaras no rosto. As pessoas na cidade traziam pão das lojas, os sacos abertos com os pães lá dentro”.

O depoimento pertence a Lyudmilla Ignatenko, mulher de um bombeiro destacado para combater as chamas na central nuclear, e foi recolhido por Svetlana Alexievich, a escritora bielorrussa que venceu o Nobel da Literatura 2015. Encontra-se no livro "Vozes de Chernobyl", vencedor do National Book Critics Circle Award em 2005, e que em Janeiro será editado em Portugal pela Elsinore, chancela lançada este ano pela editora 20|20.

A editora já disponibilizou o prólogo da obra, do qual deixamos aqui um excerto:

“É de noite. De um lado da rua, há autocarros, centenas de autocarros — já estão a preparar a cidade para ser evacuada —, e do outro, centenas de camiões dos bombeiros. Vieram de toda a parte. E toda a rua se cobria de uma espuma branca. Caminhamos sobre ela, a soltar pragas e a chorar. Pela rádio, dizem-nos que podem evacuar a cidade por três ou cinco dias, que levemos as nossas roupas quentes, vamos ficar a viver na floresta. Em tendas. As pessoas até ficaram contentes: uma excursão de campismo! Vamos celebrar o Primeiro de Maio assim, um intervalo da rotina. As pessoas preparam os utensílios para churrasco. Levaram consigo as violas, os rádios. Só as mulheres cujos maridos tinham estado no reator choravam.”

"Para cada projecto, conheci cerca de 500 a 700 pessoas e registei as conversas que mantive com elas"

Nos próximos dois anos a Elsinore vai publicar, além deste, mais três livros da Nobel da Literatura: War’s Unwomanly Face, sobre as mulheres que combateram na II Guerra Mundial; Last Witnesses: The Book of Unchildlike Stories, uma recolha de memórias de crianças da II Guerra; e Zinky Boys: Soviet Voices from the Afghanistan War, sobre a invasão soviética do Afeganistão (a palavra 'Zinky' refere-se aos caixões de zinco dos soldados).

Svetlana Alexievich comenta assim a sua obra: ”Componho os meus livros a partir de milhares de vozes, testemunhos, fragmentos da nossa vida e do nosso ser. Demorei três a quatro anos a escrever cada livro. Para cada projeto, conheci cerca de 500 a 700 pessoas e registei as conversas que mantive com elas. Os meus registos compreendem várias gerações. Começam com as memórias de pessoas que testemunharam a Revolução de 1917, atravessam as guerras e os gulags estalinistas, chegando aos dias presentes. São as histórias de uma alma soviética e russa.”

A Academia Sueca atribuiu o Nobel à autora justamente “pela sua escrita polifónica, monumento ao sofrimento e à coragem na nossa época”. Alexievich tem, por enquanto, apenas um livro publicado em Portugal, “O Fim do Homem Soviético – Um tempo de desencanto” (Porto Editora).