A orquestra do Titanic


A súbita predisposição das esquerdas é uma PPP cuja factura será apresentada mais à frente ao país e ao PS.


© Tiago Petinga/Lusa

Vivemos um momento histórico. Dizem. Exultam os que sempre sonharam com um governo das esquerdas quando ainda ontem vociferavam que “o PS e o PSD eram iguais no governo”, “concretizavam políticas de direita” e “estavam rendidos aos grandes interesses”.

É certo que, para alguns, esta pode ser uma oportunidade para exorcizar passagens pela governação com medidas que de esquerda não tiveram nada e com soluções que não acautelaram o interesse público. Exaltam-se outros tantos com epítetos e teorias da conspiração para tentarem condicionar o exercício da liberdade de expressão de quem pensa diferente: “fascistas”, “direitistas”, “anticomunistas”, e até insinuam cisões parlamentares com base num “ista” que viabilizaria um governo PSD/CDS. Predomina a exaltação emotiva, exercitam–se a criatividade e a incoerência e especula-se sobre mais experimentalismos na governação depois dos últimos quatro anos.

Por muito que custe a quem vê na política um jogo de esquemas, de jogadas e de vale-tudo, a realidade é só uma: o actual secretário-geral do PS candidatou-se para conquistar uma maioria absoluta e perdeu as eleições. E manda a tradição democrática que quem ganha, governa. Foi sempre assim, mas a tradição já não é o que era. Não é no interior do PS, não é no PS para o exterior. Agora que o partido dos animais chegou ao parlamento, é como se o PS já tivesse adoptado definitivamente a lei da selva. 

Querem que acreditemos que 40 anos de intervenção política com um registo de protesto são convertíveis em poucos dias numa atitude diferente, mas a realidade é que, enquanto negoceiam em Lisboa um governo das esquerdas, desesperam em Bruxelas por conseguir as assinaturas necessárias para que o Parlamento Europeu consagre no orçamento comunitário verbas para os países que queiram sair da zona euro. 

Querem que acreditemos que os compromissos internacionais, com a União Europeia, com a NATO e com os credores, estão salvaguardados quando, enquanto negoceiam um governo das esquerdas, declaram apoio a uma manifestação contra a NATO. 

Querem que acreditemos que, para o que ainda é preciso fazer perante a fragilidade dos indicadores sociais, económicos e financeiros, e perante as primeiras e inesperadas situações difíceis da governação, o impulso de 40 anos de protesto não se vai sobrepor à responsabilidade da procura de soluções sustentáveis. Estamos a falar de 40 anos em que não votaram um único Orçamento do Estado, alimento principal do Serviço Nacional de Saúde, da escola pública e do sistema de protecção social.

Acreditar é sempre bom; em desespero, é decisivo, mas só acredita quem quer. Foi assim com as narrativas da direita. É assim com os amanhãs que cantam das repentinas conversões à esquerda do PS. Em 2013, António José Seguro propôs ao Bloco de Esquerda e ao PCP convergências para as eleições autárquicas que foram rejeitadas por estes. A diferença é que, na ocasião, o poder tinha de ser conquistado, e agora, por razões aritméticas, pode estar à mão de semear e de ser distribuído.

Como o poder não deve ser um fim em si mesmo, importa saber qual a banda larga e a banda estreita de um governo das esquerdas. Como, com que garantias, para quê e para que horizonte temporal? A súbita predisposição das esquerdas pode ser uma auto-estrada para o diálogo e para a convergência, mas que ninguém tenha dúvidas de que é uma PPP cuja factura será apresentada mais à frente ao país e ao PS.

As sequelas serão mais graves que as que resultaram da assinatura do memorando com a troika, em 2011. Embora para alguns sejam eleições menores, importa renovar a maioria absoluta nos Açores em 2016 e, no mínimo, em 2017, manter as 150 câmaras municipais lideradas pelo PS. É por isso que o encantamento de alguns pelo poder, pelas euforias presentes e pela geometria variável das regras, dos valores e dos princípios soa à orquestra do Titanic que, depois de embater no iceberg, prosseguiu com a música enquanto o navio se afundava. E mesmo nessas circunstâncias, a orquestra tocava convictamente afinada, algo que não se vislumbra na presente situação.

A música que foi pedida pelos portugueses foi a da mudança das políticas. Quem ganha deve governar com esse registo. Não é o da austeridade custe o que custar nem é o do protesto. Tudo o resto é confundir o trágico com o histórico. Na política como na vida, não vale tudo.

Político
Escreve à quinta-feira

A orquestra do Titanic


A súbita predisposição das esquerdas é uma PPP cuja factura será apresentada mais à frente ao país e ao PS.


© Tiago Petinga/Lusa

Vivemos um momento histórico. Dizem. Exultam os que sempre sonharam com um governo das esquerdas quando ainda ontem vociferavam que “o PS e o PSD eram iguais no governo”, “concretizavam políticas de direita” e “estavam rendidos aos grandes interesses”.

É certo que, para alguns, esta pode ser uma oportunidade para exorcizar passagens pela governação com medidas que de esquerda não tiveram nada e com soluções que não acautelaram o interesse público. Exaltam-se outros tantos com epítetos e teorias da conspiração para tentarem condicionar o exercício da liberdade de expressão de quem pensa diferente: “fascistas”, “direitistas”, “anticomunistas”, e até insinuam cisões parlamentares com base num “ista” que viabilizaria um governo PSD/CDS. Predomina a exaltação emotiva, exercitam–se a criatividade e a incoerência e especula-se sobre mais experimentalismos na governação depois dos últimos quatro anos.

Por muito que custe a quem vê na política um jogo de esquemas, de jogadas e de vale-tudo, a realidade é só uma: o actual secretário-geral do PS candidatou-se para conquistar uma maioria absoluta e perdeu as eleições. E manda a tradição democrática que quem ganha, governa. Foi sempre assim, mas a tradição já não é o que era. Não é no interior do PS, não é no PS para o exterior. Agora que o partido dos animais chegou ao parlamento, é como se o PS já tivesse adoptado definitivamente a lei da selva. 

Querem que acreditemos que 40 anos de intervenção política com um registo de protesto são convertíveis em poucos dias numa atitude diferente, mas a realidade é que, enquanto negoceiam em Lisboa um governo das esquerdas, desesperam em Bruxelas por conseguir as assinaturas necessárias para que o Parlamento Europeu consagre no orçamento comunitário verbas para os países que queiram sair da zona euro. 

Querem que acreditemos que os compromissos internacionais, com a União Europeia, com a NATO e com os credores, estão salvaguardados quando, enquanto negoceiam um governo das esquerdas, declaram apoio a uma manifestação contra a NATO. 

Querem que acreditemos que, para o que ainda é preciso fazer perante a fragilidade dos indicadores sociais, económicos e financeiros, e perante as primeiras e inesperadas situações difíceis da governação, o impulso de 40 anos de protesto não se vai sobrepor à responsabilidade da procura de soluções sustentáveis. Estamos a falar de 40 anos em que não votaram um único Orçamento do Estado, alimento principal do Serviço Nacional de Saúde, da escola pública e do sistema de protecção social.

Acreditar é sempre bom; em desespero, é decisivo, mas só acredita quem quer. Foi assim com as narrativas da direita. É assim com os amanhãs que cantam das repentinas conversões à esquerda do PS. Em 2013, António José Seguro propôs ao Bloco de Esquerda e ao PCP convergências para as eleições autárquicas que foram rejeitadas por estes. A diferença é que, na ocasião, o poder tinha de ser conquistado, e agora, por razões aritméticas, pode estar à mão de semear e de ser distribuído.

Como o poder não deve ser um fim em si mesmo, importa saber qual a banda larga e a banda estreita de um governo das esquerdas. Como, com que garantias, para quê e para que horizonte temporal? A súbita predisposição das esquerdas pode ser uma auto-estrada para o diálogo e para a convergência, mas que ninguém tenha dúvidas de que é uma PPP cuja factura será apresentada mais à frente ao país e ao PS.

As sequelas serão mais graves que as que resultaram da assinatura do memorando com a troika, em 2011. Embora para alguns sejam eleições menores, importa renovar a maioria absoluta nos Açores em 2016 e, no mínimo, em 2017, manter as 150 câmaras municipais lideradas pelo PS. É por isso que o encantamento de alguns pelo poder, pelas euforias presentes e pela geometria variável das regras, dos valores e dos princípios soa à orquestra do Titanic que, depois de embater no iceberg, prosseguiu com a música enquanto o navio se afundava. E mesmo nessas circunstâncias, a orquestra tocava convictamente afinada, algo que não se vislumbra na presente situação.

A música que foi pedida pelos portugueses foi a da mudança das políticas. Quem ganha deve governar com esse registo. Não é o da austeridade custe o que custar nem é o do protesto. Tudo o resto é confundir o trágico com o histórico. Na política como na vida, não vale tudo.

Político
Escreve à quinta-feira