Poderão pensar que na especialidade que pratico, que posso chamar de positivista, as palavras terão pouco préstimo, já que a imagem parece tê-las dispensado. De facto, a grande maioria dos que me procuram, depois do cumprimento ritual, logo passam à apresentação da sua doença, ou seja, apresentam a doença, antes de se apresentarem eles próprios. Assim, desdobram CD ou um monte de películas puxadas de sacos tantas vezes com uma publicidade insólita para a seriedade do momento. Eles trazem consigo o seu tumor, algo que de alguma forma lhes é estranho, um hóspede incómodo que não haviam convidado. Daí a pergunta invariável: como é que isto apareceu? A dificuldade é que raramente lhe conhecemos a causa, e esta ignorância diminui-nos um pouco a autoridade. Mas cabe-nos sempre a nós a elaboração da narrativa sobre o que significa ter um tumor no cérebro, e misturar nisto o que não é miscível, a incerteza, o risco e a esperança. Percebi há muito que aquilo que, em rigor, poderia oferecer era, simplesmente, tempo, idealmente tempo livre de sofrimento. O que eu não suspeitara é que, quando chegasse a esta idade, o tempo ia ganhar uma outra velocidade, uma aceleração cósmica, e como isto iria condicionar muito do que penso ou faço.
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O tempo foi esculpindo em mim um outro médico, vincando alguns traços, alisando outros. Aprendi que as patologias do cérebro de que me ocupo têm o seu tempo próprio e que a cura é um processo por vezes muito longo, e isso exigiu a aprendizagem de um atributo mais próprio da contemplação do que da acção — a paciência. Mas o que a idade nos ensina também é que a natureza tem as suas razões e o seu pudor, e aprecia muito que a respeitem.
A idade também me ensinou uma maior tolerância em relação ao que ouço e a quem o pronuncia, ou seja, modela como nos comportamos do outro lado da narrativa. Mas, ao mesmo tempo, a consulta é, de certo modo, uma representação, por vezes comédia, mais vezes tragédia, e a idade parece convidar a sentarmo-nos na plateia.
Devo confessar que me enerva um pouco um certo traço evangélico da “Medicina Narrativa”, sobretudo no propalar do mandamento que obriga a oferecer sempre a outra face. É verdade que a simpatia sustentada dá muito trabalho, mas do meu lado do diálogo não há lugar para a antipatia — pelo tom, pelo vestuário, pela arrogância, ou pesporrência, e ficamos contidos em relação à história recheada de minúcias inconsequentes, das longas citações em discurso directo, da queixa terrível do “dói-me tudo”, da clara simulação ou da tentativa de outros ganhos, da confiança desafiante em terapias alternativas (que, como gosto de explicar, “só fazem mal à carteira, mas o dinheiro é seu”, o que habitualmente os espanta e, por vezes, irrita), da dúvida em relação àqueles que estão claramente no limiar da verdade, mas do outro lado, ou ainda, finalmente, das palavras dos que a nós querem chegar pela lisonja – “para quê ir aos anjos se posso ir directamente a Deus?”.
De facto, tenho a percepção incómoda de que a modernidade e tudo o que implica na sua complexidade, nomeadamente uma outra geometria social, veio alterar não só a liturgia do acto médico, mas o seu sentido mais profundo. Não raramente, sinto hoje que quem me procura acha que a sua escolha lhe dá um direito de consumidor, e que pouco me distingue de um empregado de sapataria, ou de caixa do supermercado. Este é o tempo do utente no esplendor total dos seus direitos, como se a consulta fosse uma espécie de transacção em que se compra a cura e, caso isto não seja possível ou até desejável – porque, surpresa das surpresas, há quem prefira não ser curado –, se garante, pelo menos, um atestado.
Por outro lado, a idade não me concedeu máscara que oculte a preocupação, a fadiga, a desilusão do insucesso, a dúvida quanto à verdade. A face, com os seus 250 músculos que funcionam como os tubos de um órgão, em incansável polifonia, continua nua, propícia à leitura imediata, mas a expressão é talvez mais doce, o sorriso mais quente. Paradoxalmente, o menor tempo futuro parece, em certas circunstâncias, conceder mais tempo ao presente.
Será que isto que fui dizendo é apenas o meu enxoval, feito de experiências impartilháveis, insusceptíveis de serem ensinadas e, se ensinadas, não apreendidas?
Eu desejaria que a “Medicina Narrativa” não se tornasse nem numa disciplina nem num método, e os seus apologistas, entre os quais me conto, uma seita. Foi isto que me levou, desde o início, a desconfiar da “medicina baseada na evidência”.
É possível que a relevância do que escrevi passe despercebida aos engenheiros de currículos ou aos burocratas da educação – ignorantes do mal que fazem, mas nem por isso mais inocentes –, os que nunca avistaram a alma do que fazemos ou, enfim, aqueles para quem a cultura dos outros é uma afronta, um luxo ou um vício. A “Nova Medicina”, como lhe chamei, vai deslizando para um mundo novo — o tal, como me disse um aluno, onde os médicos curam com computadores —, o tal mundo 3D, onde a casca conta mais que o miolo. Escrevi um dia: “Não sei o que nos espera, mas sei o que me preocupa: é que a medicina, empolgada pela ciência, seduzida pela tecnologia e atordoada pela burocracia, apague a sua face humana e ignore a individualidade única de cada pessoa que sofre, pois embora se inventem cada vez mais modos de tratar, não se descobriu ainda a forma de aliviar o sofrimento sem empatia ou compaixão.”
Também aqui, no princípio é o Verbo. Que outros, na literatura, na arte, na filosofia, em qualquer saber que tenha como objecto o ser e o seu tempo, nos ajudem a melhor escutar e a melhor dizer.