Ontem o Papa voltou a surpreender. A 11 dias do final do Sínodo da Família, Francisco usou a habitual audiência das quartas-feiras para fazer um inesperado pedido de desculpas: “Gostaria, antes de começar a catequese, e em nome de toda a Igreja, de pedir perdão pelos escândalos que recentemente aconteceram em Roma e no Vaticano… peço perdão”. E não deu mais explicações.
A imprensa italiana e os vaticanistas desdobram-se agora em especulações: afinal, de que é que o Papa se desculpou? Do recente caso da carta enviada ao Vaticano por um grupo de fiéis em que são denunciados comportamentos homossexuais de um prelado romano da Ordem dos Carmelitas? Do surpreendente ‘comming out’ de um padre polaco e alto funcionário do Vaticano que decidiu apresentar o namorado ao mundo na véspera do começo do Sínodo? Ou da enorme confusão que tem reinado no próprio Sínodo?
Os jornalistas bem tentaram tirar nabos da púcara através do porta-voz do Vaticano, mas Federico Lombardi fechou-se em copas: “Se o Papa utiliza uma fórmula de carácter amplo e geral, como fez, não é minha tarefa ajustá-la de outro modo”.
O que é certo é que Francisco tem, por estes dias, muito com que se preocupar. A começar pelo Sínodo – que, a meio dos trabalhos, parece não estar a chegar a conclusão nenhuma e envolto em polémicas quase diárias. O último tema quente da reunião de bispos do mundo inteiro – chamados a Roma para discutir de que maneira a Igreja poderá ou deverá ajustar-se às novas realidades da família – é uma carta enviada por um grupo de 13 cardeais rebeldes ao Papa, criticando o funcionamento dos trabalhos e dando a entender que o Sínodo poderá estar organizado de maneira a favorecer a ala progressista da Igreja – que defende mudanças doutrinais ao nível do acolhimento dos gays e a abertura da comunhão aos católicos divorciados e recasados.
Que existem duas alas distintas de pensamento na Igreja e no Sínodo já era evidente – até pelas ofensivas constantes que os dois grupos têm lançado publicamente. O que não se sabia é que o Papa recebeu uma carta, logo no primeiro dia dos trabalhos, assinada pelos 13 cardeais descontentes.
Na sexta-feira da semana passada já corriam rumores de que havia um documento secreto – lembrando o ambiente que se viveu em Roma aquando do escândalo Vatileaks de 2012. Mas só na segunda-feira é que a carta foi divulgada, pelo conhecido vaticanista Sandro Magister – que está de relações cortadas com o Vaticano há já uns meses, depois de ter violado o embargo da última encíclica do Papa.
Na missiva, os cardeais expressam preocupação em relação à forma como o Sínodo está a ser conduzido, depois de Francisco ter decidido alterar a metodologia utilizada habitualmente neste tipo de reuniões. E mais: os cardeais terão também criticado o facto de o Papa ter decidido nomear os elementos da comissão encarregue de redigir o documento final – que costumava ser eleita e não escolhida.
É de notar que as nomeações de Francisco deixaram a ala conservadora à beira de um ataque de nervos, porque quase todos os elementos que integram a comissão já manifestaram publicamente que são a favor de mudanças doutrinais – alinhando, aparentemente, com a ala liberal.
A carta critica também o “Instrumentum Laboris” – o documento redigido na primeira parte do sínodo, no ano passado, e que está a servir de base à discussão deste ano. E deixa transparecer que tudo está a ser feito de maneira a que a Igreja altere os seus ensinamentos sobre os divorciados, os recasados e as uniões homossexuais. Como se existisse um Sínodo oficial e um Sínodo oficioso, a decorrer em paralelo.
Por último, os cardeais terão avisado o Papa que, caso haja mudanças na doutrina, a Igreja de Roma estará a seguir o caminho das igrejas protestantes, que se desmoronaram por se terem distanciado da tradição cristã.
Como se já não bastasse, a reacção pública dos cardeais que alegadamente subscreveram o documento tem sido pouco concertada. Quatro negam ter conhecimento de qualquer carta; o subscritor número um, George Pell, admite que houve uma carta, mas garante que o conteúdo divulgado por Sandro Magister tem alguns erros e dois outros cardeais confirmam ter assinado uma carta, mas não a que veio a público.
No meio da confusão, o Papa apareceu de repente no meio dos trabalhos do Sínodo – sem que a sua presença estivesse na agenda –, para afirmar que o documento de trabalho é, de facto, o “Instrumentum Laboris”, que as regras mudaram por sua iniciativa e vão manter-se e para pedir aos bispos que não se deixem envolver em “conspirações”. Entretanto, o porta-voz do Vaticano tenta segurar o barco.
Na segunda-feira, e questionado pelos jornalistas sobre se a carta existe ou não, Federico Lombardi limitou-se a responder que deve ser o Papa “a dizer se recebeu, ou não, o documento”.
Sínodo torto não se endireita
Com carta ou sem ela, a imagem do Papa – imaculada desde o início do pontificado – corre o risco de ficar manchada por culpa do Sínodo. Os acontecimentos dos últimos dias mostram que, afinal, Francisco não é o Papa acessível que parece ser – caso contrário, não seria necessário os cardeais fazerem-lhe chegar uma opinião por carta formal e só no primeiro dia do Sínodo.
Também a imagem de Papa que desburocratiza e simplifica corre o risco de cair por terra, uma vez que a confusão em torno da metodologia dos trabalhos foi gerada por Francisco, que decidiu mexer no funcionamento dos trabalhos e aparentemente complicando-os. Também a comunicação, pedra basilar deste Papa, começa a dar sinais de não funcionar.
Desde logo porque no ano passado já havia sinais que indicavam que a reunião deste ano poderia não correr bem: escrevia-se – e chegou a ser publicado um livro sobre o assunto – que o “Instrumentum Laboris” tinha sido manipulado para favorecer a ala progressista, inquinando à partida a discussão deste ano. Francisco não reagiu. Por outro lado, os jornalistas vaticanistas têm estado, este Sínodo, bastante desocupados, porque ao contrário dos Sínodos anteriores não têm sido publicados os habituais resumos das intervenções dos bispos nas sessões plenárias. Não há, portanto, sobre o que escrever.
A juntar à confusão, e apesar de ter mudado as regras do funcionamento do Sínodo, Francisco ainda não explicou como é que se irá processar o final dos trabalhos e se vai haver ou não relatório final e como será redigido.