Fado vadio. Silêncio, que se vai cantar tradição

Fado vadio. Silêncio, que se vai cantar tradição


Numa altura em que o fado português chega aos mais aclamados palcos do mundo, é hora de voltar às origens. É no Bairro Alto, Mouraria e Alfama que estão as tascas onde profissionais e amadores se duelam numa batalha chamada fado vadio.


À volta do Chico não falta nada daquilo que ele tem para oferecer, até porque a Rua do Diário de Notícias é conhecida por ter fado, petiscos e bom vinho em cada esquina. A diferença estará na tradição, dizem alguns. Isto porque, em pleno Bairro Alto, o vizinho da frente desta tasca tem apenas um mês de portas abertas e o do lado prefere dar primazia ao inglês na apresentação da ementa. Já o Chico tem lugar reservado no número 39 há mais de 20 anos e a ementa, essa, está escrita a giz e apenas em português, até porque caldo verde e chouriço assado não deviam ter tradução em palavras.

Entre portas deparamo-nos com as oito mesas mais concorridas do bairro e a fila já se começa a formar lá fora ainda a hora do fado vai longe. Numa mistura de inglês, espanhol e italiano que se cruzam em tom elevado, é o silêncio dos dois únicos portugueses da sala que chama a atenção. Fernando Romão ocupa o mesmo banco todas as noites e faz da vinda à Tasca do Chico uma espécie de peregrinação. “Às segundas e quartas é certinho.” Se em tempos se aventurava a mostrar dotes “numas paródias”, os actuais 86 anos fazem com que prefira assumir apenas o papel de espectador. O que Fernando não sabe é que jogar a cartada da idade como desculpa não pode ser usado aqui. No banco ao lado está Henrique Gonçalves, que aos 91 anos faz questão de cantar de todas as vezes que faz uma visita ao Chico. Escreve as letras que canta e confessa que as criadas em homenagem “à sua senhora”, que morreu há 17 anos, são as que lhes saem com mais sentimento. “Quem me tira isto tira-me tudo”, admite, enquanto se aperta no banco para dar espaço a Sara Feiteiro, que acabou de chegar.

Os seus 22 anos sobressaem na fila que assiste ao espectáculo, apesar de não faltar muito para que salte da bancada para o centro da tasca. “Canto por contrato noutro restaurante da rua, mas é aqui que o faço com mais prazer.” Henrique sorri com olhar cúmplice: “É esta a magia do fado vadio.”

O Bairro Alto, lado a lado com Alfama, Madragoa ou Castelo, foi sempre o palco mais típico do fado, quando ainda era cantado apenas nos pátios, nas ruas e nas tabernas pelo povo sem instrução, mas que não precisava de escola para exprimir a tristeza e a saudade através da música. O fadista reconhecido como artista só chega no século XX, com a ditadura a obrigar os cantores a ter carteira profissional e a apresentar um repertório aprovado pela censura. Temas como a nostalgia, o ciúme e as histórias do quotidiano dos bairros passavam incólumes pelo lápis azul; o mesmo já não se pode dizer das músicas que ousavam falar sobre problemas sociais ou políticos.

A ligação do fado ao antigo regime – não esquecer que fazia parte dos três F de Salazar – fez com que perdesse força depois de 1974. Como muitas vezes acontece, o regresso à tradição em Portugal chegou com o reconhecimento estrangeiro, quando em 2011 o fado foi classificado pela UNESCO como Património Oral e Imaterial da Humanidade.

Uma nova geração de fadistas como Mariza, Camané, Carminho e Gisela João enche as maiores salas de espectáculo do mundo, mas não esconde que os “palcos” onde arriscou os primeiros cantares envergonhados são os mesmos que, décadas antes, serviam de coliseu a nomes como Alfredo Marceneiro, Fernando Maurício, Severa e Amália Rodrigues. 

Os rituais 
Na Tasca do Chico, o fado tem hora marcada, mesmo em dia de Benfica. Às 21h, João Carlos deixa de lado a sua primeira função no estabelecimento – a de chefe de mesa -, veste o blazer preto, apaga as luzes, coloca-se no centro da sala e dá nome aos homens que seguram a viola e a guitarra portuguesa e vão acompanhar quem aparecer para cantar. Apresentações feitas, está na hora de assumir mais uma personagem. Mãos nos bolsos, olhos fechados e voz aberta em quatro fados, com as “trovas antigas, saudade louca” do “Fado do Bairro Alto” a deixar antever a pausa que aí vem. João Carlos dá ordens de intervalo e anuncia: “Obrigada pelo silêncio. Já podem conversar.” Os olhares perdidos a pedir tradução fazem com o que o silêncio se mantenha até que as luzes se acendam. João Carlos, que comemora esta noite 15 anos de casa, já conhece os hábitos dos clientes, apesar de aparecerem às centenas todas as noites. “Olhe, por exemplo, os estrangeiros são muito mais respeitadores do silêncio do que os portugueses”, conta, e acrescenta; “Até aplaudem mais.”

Quem se junta ao coro de aplausos é Chico – sim, o verdadeiro Chico –, que nunca se aventurou em palcos, nem mesmo o de uma casa que é sua. Começou a trabalhar em tabernas ainda em criança e o destino não seria outro que não o de abrir o seu espaço. “Ainda me lembro de segurar no casaco da dona Amália com todo o cuidado quando ela ia aos restaurantes onde trabalhei.” A proximidade com os grandes nomes do fado ajudou a despertar a curiosidade sobre um espaço que, apesar de actualmente multiplicado por outras tantas dezenas nos bairros mais típicos de Lisboa, continua a ser o primeiro nome que surge na memória de quem pensa em fado vadio.

“Temos aqui de tudo”, conta Chico a tentar justificar a fama, “tanto o senhor de 91 anos que vem cá cantar todas as semanas, como a Mariza, que vem cá muitas vezes e não resiste a um fadinho.”

Fado Vadio vs. Tertúlia
É exactamente este palco dividido entre profissionais e amadores que deixa Hélder Moutinho de pé atrás na hora de usar a expressão fado vadio. “Prefiro tertúlia de fado.” A conotação com o antigo regime não o deixa confortável e, além disso, considera que o profissionalismo de alguns dos músicos que frequentam estes espaços não pode ser ignorado. 

Quando há dois anos reabilitou a casa onde viveu a Severa – “considerada na época a expressão sublime do fado”, diz a placa de mármore colocada à entrada – e a transformou no restaurante “Maria da Mouraria”, quis manter a tradição reforçando a qualidade e isso vê-se na decoração, na ementa e no rol de músicos que por lá passam todas as noites. “Tanto canto eu como o cozinheiro do restaurante”, garante. Num intervalo entre esta dupla, que realmente assume o protagonismo poucos minutos depois, ouvimos Marco Oliveira, que não precisa dos olhos abertos para que a música lhe saia da voz e das mãos que dedilham a viola. Três fados depois é hora do intervalo, e esse é quase tão bem aproveitado como o era nos tempos de escola. Já com as luzes acesas, o restaurante retoma o seu ritmo normal e é hora de escolher entre a musse de chocolate e a pêra bêbada para sobremesa, pedir mais um copo de vinho e despachar um cigarro fumado à porta.

Hélder olha para o relógio e faz contas às horas que faltam para o voo que o leva a Helsínquia, para mais um espectáculo. O coração do fadista pende entre os grandes palcos e os pequenos fados que faz questão de cantar sempre que consegue marcar presença no restaurante. “Quando estou num palco, sinto que as pessoas estão ali para me ouvir e isso é uma grande ajuda na actuação”, explica. Por outro lado, não há nada que substitua o ambiente de tasca. “Isto é o gueto, é o ambiente natural do fado”, conta, e é por isso que faz questão de transportar para os palcos o que acontece numa casa de fados. “Falo dos bairros, conto histórias. Para mim, só assim é que o fado é inteiro.”

Antes da abertura da “Maria da Mouraria”, o bairro não tinha casas de fado em funcionamento, “o que é estranho”, lembra Hélder, “porque dizem que foi aqui que nasceu o fado”. 

Se em espaços fechados o fado é escasso por estas bandas, mais comum é ver a música a sair das casas de quem lá mora ou mesmo de quem se junta para cantar na rua. Nos vizinhos “Amigos da Severa”, ninguém tem autorização para baixar o som aos fados da Rádio Sim, o que obriga a que as conversas tenham de ser tidas quase aos gritos. As gargantas arranhadas pedem mais uma ginjinha, que sai às dezenas por detrás do balcão de António. A tasca está aberta há 300 anos – “sobreviveu ao terramoto”, refere -, mas é há 40 que estes poucos metros quadrados são geridos por si. “Eu, que nem gostava de fado”, lembra, “vim parar a uma casa onde já cantou a Amália”. Mas remata: “Claro que entretanto já aprendi a gostar.”

Um fado em cada esquina
Se escolhermos o Largo do Chafariz de Dentro como ponto de partida para o fado, é certo que nem é preciso lançar dados para saber que a paragem é obrigatória em todas as casas. Mesmo sem ser um filme, este bairro tem personagens dignas de Óscar e uma banda sonora da qual ninguém consegue escapar. “Ao vivo”, “Live”, “Fado tonight” são frases tão comuns nas montras destes restaurantes como as ementas, que se apresentam em todas as línguas, e os funcionários que nos convidam para sentar. Já na Baiuca, por sua vez, dono e funcionários são obrigados a mostrar um ar desolado a quem passa e já não tem lugar para jantar.

Neste restaurante, também é o chefe de mesa a apresentar a equipa de músicos e a arriscar-se nos primeiros fados. “Silence, please”, pede Rui Marques. O pedido é uma ordem para uma casa cheia na qual nem os talheres se ouvem a pousar no prato. No final, os aplausos estrangeiros mostram-se novamente mais audíveis que os portugueses. Rui passa a palavra, ou o fado, ao próximo nome: Elvira Giglo. O que ninguém esperava era ver a cozinheira, que nem tempo tem para tirar o avental e a touca, a sair detrás do balcão para assumir o papel principal da sala. As reacções satisfeitas mostram que ninguém se importa de esperar mais 15 minutos para que o polvo à Baiuca chegue à mesa para ouvir os dois fados que canta sem tomar fôlego.

Henrique Gascón, o dono, nunca teve ninguém contratado. “Não gosto desses formalismos, gosto muito mais do fado espontâneo”, conta. E garante que, mesmo sem dinheiro a entrar nas negociações, nunca faltaram artistas a animar as noites de quinta a domingo. “Vá, não se pode chamar pagamento a um copo de vinho ou a um jantar oferecido de vez em quando”, brinca. 

A conversa é interrompida pelos cumprimentos de quem se cruza todas as noites. Jorge Almeida não só faz questão do passou-bem como pára em frente ao restaurante antes de subir para casa, paredes-meias com a Baiuca. “Ó mulher, põe o lume da sopa mais baixo que eu ainda demoro”, grita. Durante anos cantou em todas as casas de fado do bairro, mas agora, desde que tirou os dentes, fica apenas a ouvir da janela. “Não tenho a mesma dicção e o fado não pode ser cantado de qualquer maneira”, explica. Orgulha-se de ter sido o único comerciante a prestar homenagem a Amália Rodrigues no dia da sua morte. A dias de se assinalar a efeméride – na próxima terça-feira –, Jorge conta que, como antigo colaborador da Baiuca, interrompeu-se o fado vadio nessa noite para que só se ouvissem fados da artista. “É uma coisa que está em mim”, diz ,sem saber explicar melhor o fado que lhe está no corpo. “Olhe, menina, não é fadista quem quer, é fadista quem já nasceu fadista.”

Henrique sorri, com a cumplicidade de quem já se habituou a ouvir as histórias que Jorge conta sem dar tempo para interrupções. “Foi ele que me incentivou a ter fados nesta casa.” Quando abriu portas, em 1998, Henrique vinha de uma carreira de 34 anos como bancário. Mesmo sem dominar os truques da restauração, aproveitou a entrada na reforma para abrir o espaço com que sempre sonhou. “Tinha de ser num bairro típico, com muita luz natural e a ocupar uma esquina. O número 20 da Rua de São Miguel pareceu-lhe perfeito e, mesmo fora da sua zona de conforto, fez da casa um sucesso. “O reconhecimento vem 99,9% do meu amadorismo e 0,1% do facto de ser dos poucos taberneiros que, na altura, falava outras línguas”, o que dá jeito numa casa quase sempre cheia de estrangeiros. “Emocionam-se muito e, mesmo sem perceberem a letra, já vi muita a gente a chorar”, conta. Jorge acrescenta: “Cantamos isto de tal forma que nem é preciso tradução.”

Aproveitamos os 15 minutos de intervalo anunciados lá dentro para seguir caminho pelo que resta do fado de Alfama. Mas uma última dúvida faz-nos voltar atrás: porquê Baiuca? “Não queria apresentar-me como o rei disto ou a estrela daquilo, como tantos outros”, refere Henrique. 

Entre explicações, volta a assumir o ar desolado de quem tem de recusar o jantar a um grupo que não chegou a tempo de arranjar mesa. Rui vem cá fora, numa mão o telemóvel em espera, na outra um papel rabiscado. Tapa o bocal e num piscar de olho, sussurra: “Com esta marcação, já temos casa cheia amanhã.” Ninguém diria que Baiuca é o nome dado a uma taberna antiga, sem categoria.