É uma espécie de cliché mas é a maior das verdades: os anseios de Chantal Akerman estavam nos filmes que realizava. Talvez porque o procurasse fazer deliberadamente ou então porque seria sempre impossível escapar a uma ordem subliminar, muito mais eficaz que as decisões conscientes. Sobretudo a quase ausência de fronteiras entre a realidade e a ficção, entre uma história romanceada e o seu real significado, isso nunca a largou. Akerman conseguia ser abstracta sendo bastante concreta e essa boa mania que tinha de cruzar as duas dimensões sem de facto se decidir por nenhuma é que justificava a palavra que ontem aparecia muitas vezes junto do nome da belga, assim que se soube da notícia da sua morte: pioneira.
Porque era um daqueles nomes que mostram o que nunca vimos, como nunca vimos, ChantalAkerman seria a protagonista de uma exposição (a primeira no Reino Unido) em Londres, na Ambika P3, para coincidir com a estreia de “No Home Movie”. Seria e, acrescentemos, será, que os planos mantém-se. De 30 de Outubro a 6 de Dezembro, uma viagem através da arte de Akerman, que se fazia no cinema mas não só, graças a um vício de exploração e experimentação que a levou a assinar, por exemplo, instalações de vídeo desafiantes e pouco dadas a facilitismos. Trabalhos sobre a bomba de Hiroshima ou os países do Leste europeu antes da queda do Muro de Berlim farão parte das obras apresentadas.
Mantém-se a exposição porque se mantém o cinema que Chantal fez, está tudo relacionado com a mesma lei, a de que não havia como substiuí-la. Um cinema visceral, não necessariamente apontado ao impacto visual mas intenso nas verdades que procurava mostrar. Assim era a obra que a realizadora fazia e a forma que tomava para a dirigir, assim era também a relação que mantinha com o próprio trabalho: não existiam duas dimensões na vida de Chantal Akerman, trabalho e o resto, estava tudo junto, não havia volta a dar. Também por isso houve quem lançasse pistas sobre a morte da artista, ontem aos 65 anos, associando-a a recentes reacções no Festival de Locarno a “No Home Movie”. O filme foi mal recebido e Akerman terá entrado em profundo desequilibrio emocional. Ontem, o jornal francês “Le Monde” adiantava mesmo que se tratara de suicídio, sem que nenhuma causa de morte oficial tivesse sido adiantada.
Cinema em casa
Ainda sobre “No Home Movie”, o filme é mais um ensaio sobre a mãe de Chantal, Natalia, sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz e que morreu no ano passado. Um tema, aliás, que nunca a deixou. Chantal nasceu emn Bruxelas, filha de judeus polacos. Nasceu para as fitas em 1965, com “Pedro O Louco”, de Godard, mas a família foi sempre um dos seus fascínios.
“No Home Movie” é um filme completamente distinto mas é fácil que dê boleia de regresso a “Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelle”. Morada completa para um retrato de quase quatro horas de uma dona de casa na capital belga. Dona até certo ponto: tanto vemos o trabalho doméstico como o atendimento a clientes que por ali passam porque aquela é a casa de uma prostituta. Poucas coisas tão simples podem revelar-se tão complexas. Uma duplicidade que acompanhouAkerman em muitos outros momentos, nos mais comerciais (como “Um Divã em Nova Iorque”, de 1996, com Juliette Binoche e William Hurt) como nos trabalhos menos narrativos – por exemplo, a instalação “Women From Antwerp in November”.
Quase sempre com mulheres como protagonistas, nas personagens e nas mensagens transmitidas, ChantalAkerman mostrou aos muitos que não se cansam de a elogiar, que há sempre novas formas de fazer cinema. Entre os fascinados havia espaço para todos: os espectadores que nunca mais viram filmes da mesma maneira e outros mestres, como RainerWerner Fassbinder, que chegou a descrever Akerman como “a mais importante realizadora europeia da sua geração”.