As velas do bolo dos 25 anos da Companhia de Dança de Almada (Ca.DA) foram apagadas ao longo de três dias, entre 25 e 27 de Setembro, num programa festivo que deu início à 23ª edição da Quinzena de Dança de Almada (International Dance Festival), que se prolonga até sábado. Passámos um dia na casa da companhia, porque não é todos os dias que se celebra um quarto de século, sobretudo quando falamos de estruturas culturais.
“Ia-vos apenas pedir que se descalçassem”, diz-nos Maria Franco, directora artística e fundadora da companhia quando nos abre a porta de um dos estúdios. Os bailarinos profissionais estão na aula de aquecimento de dança clássica, que antecede o ensaio de “Jogos de Letras”, um espectáculo com coreografia de Nuno Gomes que a companhia vai levar às escolas durante esta semana.
À segunda-feira custa a todos
É um mal de todas as profissões, de todos os seres que se habituaram a ter dois dias de descanso semanal. Aqui é ainda pior, pois estamos perante gente que estica os músculos até zonas proibidas ao comum mortal. Maria João Lopes, directora de cena da Ca.DA e professora-ensaiadora, puxa pelos bailarinos, primeiro com as barras, depois ao centro, já sem apoios.
Surpresa para nós é a atmosfera saudável que aqui se vive. Nada é profundamente rígido, não há reguadas psicológicas quando se falha uma recepção ou quando se ri por lapso próprio. “Sim, à segunda custa mais, estamos todos mais perros, mas este é um grupo muito coeso, já nos conhecemos e é tudo mais fácil se houver boa disposição, as pessoas são profissionais, não é preciso estar sempre de cara amarrada”, confessa-nos Maria João, que percorre estes corredores há dez anos. A mesma que, uns minutos antes tinha utilizado uma expressão que jamais nos saiu do ouvido: “Ai Nossa Senhora do Ballet”, isto quando a própria também erra a dar uma coreografia. Conclusão (que todos sabemos há anos): também na dança, a segunda-feira é um dia que não interessa a ninguém.
Espaço não falta
É também por aqui que encontramos Catarina Morla, lisboeta de 26 anos que vem à Quinzena de Dança Almada apresentar “Designed to Fail”, o seu primeiro espectáculo enquanto coreógrafa – isto depois de o ter estreado no EKA Palace, em Março.
No segundo piso do Ca.DA Centro, os dois intérpretes de “Designed to Fail” parecem recriar um jogo de sombras e confrontos entre si, corpos em busca de uma sintonia, como aliás a própria Catarina nos admite: “Exacto, é um jogo de comunicação entre duas pessoas, não há uma história, mas há algo que querem dizer um ou ao outro, há tentativas falhadas, como o título indica. Este espectáculo fala das segundas e terceiras hipóteses que todos temos na vida, e como a falha nos faz atingir o melhor”.
A sensibilidade que a coreógrafa parece querer incutir numa obra entre a emoção e a força física é posta à prova sem recurso a nenhum movimento de dança. Catarina entrega um papel aos dois bailarinos e pede-lhes que preencham um pequeno formulário para perceberem o que sentem em relação às intenções da peça. Coisa que provoca um franzir de sobrancelha a gente que está habituada a exprimir-se em palco, sem recurso a palavras. Nada que a coreógrafa não trate de descomplexar. “Só preenchem o que acham que devem preencher, não vos quero forçar a nada, isto é mais para vos fazer pensar”. Um pouco aquilo que “Designed to Fail” – para ver amanhã, às 21h30 na Sala Experimental do Teatro Municipal Joaquim Benite – nos promete provocar.
Não há idade para dançar
Mudança de paisagem repentina. Se até aqui o átrio, onde também se encontra uma exposição de fotografia em jeito de retrospectiva destes 25 anos, tinha sido o nosso cantinho, sempre silencioso e pacífico, agora é tempo da miudagem se apoderar deste lugar. A Escola da Ca.DA é um exemplo distinto no que à preponderância local diz respeito – basta ver os avós e pais a carregar as mochilas dos pequenos para entender que se esta escola fechasse havia gente de sobra para sentir a sua falta.
Uma das mais divertidas – e barulhentas – é Margarida. A aquecer por sua conta antes de entrar na sala (por aquecimento entenda-se saltar de azulejo para azulejo marcado no chão, numa espécie de jogo da macaca improvisado, desta vez sem pedra). Rita Barata, a sua mãe, mostra-se tranquila. “Nem sempre ela vem tão entusiasmada, hoje é o primeiro dia do ano lectivo para ela, daí que esteja assim. Dancei muitos anos, mas não foi por isso que a inscrevi, a Margarida sempre mostrou dotes e gosto em apresentar os seus espectáculos privados em casa”, confessa. Quanto ao futuro, Rita também não se assume muito autoritária: “Se lhe interessar ser bailarina profissional, a mim interessa-me certamente. Não tenho receio algum, sou psicóloga, a minha área também está péssima mas nem por isso virei a cara à luta”.
Também aluna, mais um pouco mais velha – tem 16 anos – Beatriz Coutinho vai no seu quarto ano de curso vocacional na Escola da Ca.DA. Ao contrário do testemunho anterior, a jovem bailarina e estudante afirma ser complicado vir a fazer da dança vida. “Para ser bailarina não posso ser mais nada, aos 35 anos tenho que parar porque o corpo não permite mais, além de que a instabilidade da profissão assusta-me. Quero ser médica, de preferência ligada à cirurgia cardio-toráxica, gosto muito de ver o coração trabalhar”, diz quem chegou à escola às 16h e só tem aula às 18h30. “Queria continuar a fazer qualquer coisa, mas não vai ser fácil, a medicina também exige muito”. Agora só cabe a Beatriz decidir – a Ca.DA vai permanecer por aqui, resta saber se por mais 25 anos.