Herói ou vilão?  Nunca o leite gerou tanta discórdia

Herói ou vilão? Nunca o leite gerou tanta discórdia


A Comissão Europeia desbloqueou 500 milhões de euros para apoiar os agricultores, sobretudo do sector do leite. 


Mas quem produz, além da falta de apoios, queixa-se principalmente das informações contraditórias que levam cada vez mais pessoas a ter medo dos lacticínios.

Um copo de leite morno ao deitar, para dormir melhor, e outro ao acordar para dar energia logo de manhã. É uma fonte de cálcio, previne doenças e aumenta as defesas. Os conselhos que ouvimos das bocas das avós e dos anúncios de televisão têm vindo a ser abafados pelas vozes que, de repente, vêm mostrar que o alimento que funcionava como super–herói na infância é, afinal, um vilão para a saúde. 

Os benefícios do leite deixaram de ser consensuais e há cada vez mais portugueses a retirar o produto da alimentação diária. O leite, a par do trigo – sim, o famoso glúten – , têm sido os dois alimentos mais fustigados pela corrente de defesa de uma alimentação mais saudável, contrariando tudo aquilo que servia de propaganda alimentar durante décadas. Perante estas mudanças radicais de opinião, a bastonária da Ordem dos Nutricionistas alerta para o perigo dos extremos. “O leite, tal como qualquer outro alimento, não deve ser endeusado nem diabolizado.” Ao i, Alexandra Bento lembra que, numa alimentação saudável, a moderação continua a ser a palavra de ordem. “É por isso que defendo que quem não tiver intolerância à lactose e gostar do sabor não tem porque deixar de beber leite”, refere, lembrando, por outro lado, o erro cometido por quem o consome em excesso: “O leite não serve para matar a sede, para isso temos a água.”

Preferindo manter uma posição neutra, sem escolher um lado nesta espécie de guerra de prós e contras do leite, a bastonária lembra que este alimento nunca saiu da roda dos alimentos portuguesa, o único instrumento nacional de recomendação alimentar.

Recorde-se que, por indicação da Universidade de Harvard, o leite e derivados foram retirados da nova pirâmide alimentar, depois de ter sido provada uma relação entre o consumo de lacticínios e o risco de cancro da próstata e dos ovários. No entanto, Alexandra Bento lembra que o perigo se centra no consumo de leite gordo e, por isso, recomenda que a preferência dos consumidores penda para as opções magro ou meio--gordo. Mesmo para quem tem intolerância à lactose – estima-se que um terço dos portugueses sofra desta incapacidade de digerir a lactose –, a bastonária apresenta a solução: “Leite sem lactose ou iogurtes que, apesar de terem este açúcar presente, têm-no em proporções muito reduzidas.” 

Produtores em luta Milhares de produtores de leite estiveram ontem reunidos em Bruxelas, num protesto contra o fim das quotas leiteiras, a falta de escoamento dos produtos e a baixa generalizada de preços. O protesto decorreu durante a reunião extraordinária dos ministros da Agricultura dos 28, da qual saiu uma boa notícia para o sector: a Comissão Europeia decidiu desbloquear 500 milhões de euros para apoiar os produtores agrícolas europeus, sobretudo do sector do leite. “Esta é uma resposta robusta e demonstra que a Comissão assume de forma muito séria as suas responsabilidades face aos agricultores”, declarou Jyrki Katainen, vice-presidente do executivo comunitário.

Apesar da presença de algumas dezenas de agricultores em Bruxelas, as manifestações também se fizeram em solo nacional. Os produtores de leite da zona do Minho e Douro Litoral reuniram-se numa exploração de Vila do Conde e alertaram para que a maioria das explorações leiteiras estão numa situação financeira insustentável, garantindo que se está “a vender leite mais barato do que água”.

Os preços pagos ao produtor têm sofrido quebras no sector do leite, com uma conjuntura marcada pelo fim das quotas de produção, um regime que terminou a 31 de Março – após 30 anos em vigor –, e pelo embargo da Rússia a produtos da UE. Os produtores portugueses pedem um pagamento de 34 cêntimos por litro de leite, quando o preço de intervenção actual está entre os 18 e os 21 cêntimos. Para alcançar esse acordo, apelam à intervenção do governo, mas pedem também para que se consuma mais leite nacional. Carlos Neves, presidente da Associação de Produtores de Leite de Portugal, culpa a “campanha” feita nas redes sociais que vieram diabolizar o consumo de leite. “Há uma tendência para cortar com o que é padrão, para lançar modas, e esta é mais uma”, refere ao i. O produtor lamenta a demora dos governos em reagir “a uma crise que já era esperada há alguns anos” e espera que a resposta venha da parte dos consumidores: “Não queremos inflacionar o preço do leite, mas se a indústria e a distribuição colocarem à venda a um preço razoável e os consumidores preferirem leite nacional, as coisas melhoram.”