Rui Rangel continua sem dizer se vai ou não pedir escusa da apreciação do recurso da defesa de José Sócrates, que entrou no Tribunal da Relação de Lisboa e lhe foi atribuído por sorteio em meados de Julho. Até ontem, não tinha entrado nenhum pedido no Supremo Tribunal de Justiça (ao qual caberá apreciar um eventual pedido). Por tratar–se de um processo de direito penal, e não civil, o juiz desembargador escapa às regras apertadas que a lei prevê para estes casos. Mas, num parecer sobre o “direito de reserva”, o Conselho Superior da Magistratura já defendeu que os magistrados devem manter-se a uma distância de protecção em relação ao palco mediático.
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Rangel é juiz desembargador na nona secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL). Coube-lhe, juntamente com o juiz desembargador Francisco Caramelo, da mesma secção, apreciar o recurso em que os advogados de José Sócrates apontam outra irregularidade no processo que corre sobre o ex-primeiro-ministro – em causa estão os prazos do inquérito, que têm consequência na continuidade (ou não) da prisão preventiva.
Longe de ser um recurso inédito interposto pelos advogados João Araújo e Pedro Delille, este teve a particularidade de ser entregue a um juiz que, nos últimos nove meses, já se pronunciou por diversas vezes sobre a Operação Marquês. Num dos mais recentes comentários, feito à TVI24, Rangel chegou a dizer que a decisão do juiz de instrução Carlos Alexandre de manter Sócrates em prisão preventiva, em Junho, passava a imagem de uma justiça “vingativa”, depois de o socialista ter rejeitado a pulseira electrónica na prisão domiciliária proposta pelo Ministério Público (MP).
A regra de ouro Se em causa estivesse um processo civil, a lei seria directa. O Código do Processo Civil (CPC) refere que “nenhum juiz pode exercer as suas funções (…) quando tenha intervindo na causa como mandatário ou perito ou quando haja que decidir questão sobre que tenha dado parecer ou se tenha pronunciado, ainda que oralmente” (artigo 122.o, n.o 1). Os vários comentários de Rangel sobre o processo enquadram-se neste ponto.
Mas o caso é diferente, uma vez que o ex-primeiro-ministro é suspeito da prática dos crimes de fraude fiscal, branqueamento de capitais e corrupção passiva. E, a este respeito, oCódigo do ProcessoPenal (CPP) prevê que “a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.
Se Rangel não pedir esse afastamento, podem ainda fazê-lo o MP, o arguido, eventuais assistentes do processo (ainda não é conhecido nenhum) ou as partes civis. Até ao momento, do lado de Rangel, nada. “No âmbito do processo em referência, o Tribunal da Relação de Lisboa não tem conhecimento sobre a apresentação de qualquer pedido feito pelo Senhor Juiz Desembargador ao Supremo Tribunal de Justiça”, esclareceu ontem ao i a Relação de Lisboa. Esse pedido pode, ainda assim, ser apresentado ao Supremo até à fase de conferência, praticamente em cima da decisão dos juízes sobre o recurso. Questionado, o juiz desembargador recusa esclarecer se pondera ou não pedir escusa: “Não faço comentários”, limita-se a dizer.
Mas a verdade é que, entre a magistratura, o silêncio (ou o dever de reserva, nos termos próprios) é regra de ouro – uma regra que Rui Rangel tem interpretado em sentido contrário ao Conselho da Magistratura.
Num compêndio sobre ética e deontologia dos juízes, publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, é referido, a respeito dos “deveres do juiz”, que “para garantir a sua independência, o juiz deve declarar-se impedido, ou ser declarado impedido, quando a sua imparcialidade seja duvidosa”.
No próprio estatuto dos magistrados, pode ler-se que “os magistrados judiciais não podem fazer declarações ou comentários sobre processos, salvo, quando autorizados pelo Conselho Superior da Magistratura, para defesa da honra ou para a realização de outro interesse legítimo”.
Esse “silêncio de honra” deixa de fora intervenções de cariz “pedagógico”. Isto é, um juiz poderia intervir publicamente para explicar questões processuais, como os timings para tomadas de decisão, por exemplo – algo de que as declarações de RuiRangel têm andado distantes.
Decisão fora de tempo O recurso da defesa de José Sócrates foi distribuído em meados de Julho. Uma decisão só deve acontecer depois do mês de Setembro. Mas na próxima semana, o processo pode dar uma volta: basta que o juiz Carlos Alexandre decida pôr um termo à prisão preventiva do ex–primeiro-ministro.