O sobe-e-desce e, em particular, o desce das bolsas chinesas na última semana têm sido analisados numa perspectiva macroeconómica à escala planetária, com a avaliação das consequências para os países produtores de matérias-primas, ou exportadores de tecnologia, ou importadores de produtos chineses, ou mesmo os países asiáticos que concorrem com as exportações chinesas.
Há uma outra perspectiva de análise dos solavancos bolsistas que deve merecer a nossa atenção. O “contrato social” chinês (enfim, um contrato de adesão não sujeito a revisões periódicas, vulgo eleições…) entre o Partido Comunista Chinês (PCC) e a população assenta na garantia, por parte do PCC, de um crescimento económico constante, acompanhado de uma capilaridade social elevada, quer na rapidez (menos de uma geração) quer na fatia da população que dela beneficia (várias dezenas de milhões de indivíduos em cada ano). Na prática, o contrato social chinês assegura que as populações rurais que praticam uma agricultura de subsistência se podem transformar em proletariado urbano, que os proletários urbanos podem passar à classe média e que da classe média se podem alcandorar em número crescente os milionários.
A capilaridade social assegura a paz social e permite que o PCC governe sem contestação e possa ser olhado como distribuidor de felicidade e de riqueza, aqui tidas por equivalentes, como na célebre frase supostamente atribuída a Deng Xiaoping: “Enriquecer é glorioso!”
A propaganda do modelo “um país, dois sistemas” (esta seria uma frase de Mao mas que Deng popularizou e que a lenda acabou por lhe atribuir) não consegue, como diria a vulgata marxista, esconder as “contradições insanáveis”. Desde logo quando um dos elementos do sistema, o PCC, se dedica a experimentalismos de política social, cultural e económica.
No último ano, a nova gerência do PCC desencadeou um combate público à corrupção, matando alguns tigres do PCC para assustar os macacos. Os consumos de luxo foram diabolizados, bem como o jogo, este praticado por um número bem maior de chineses. As taxas de juro foram reduzidas, tornando pouco atraentes formas conservadoras de poupança. E o comum dos cidadãos foi incentivado a “jogar na bolsa”. E a bolsa respondeu em conformidade, crescendo, no caso de Xangai, mais de 142% no espaço de um ano. Uma percentagem significativa dos novos investidores em bolsa são particulares, famílias inteiras que venderam outros activos para “jogar na bolsa” e que, tendo jogado, se endividaram para “jogar” ainda mais forte.
O recente crash bolsista não somou ainda mais do que 40% de perdas, o que é pouco tendo em conta a bolha que se gerou no último ano. Mas os afectados estão profundamente desapontados com o facto de “empobrecer não ser glorioso”.
Para limitar o pânico, o PCC estabeleceu limites administrativos à venda de acções. Fixou um máximo diário de descida para as cotações. Ordenou às empresas públicas que comprassem acções. Reduziu as reservas a que os bancos estavam obrigados. Injectou liquidez no mercado interbancário. Diminuiu repetidamente as taxas de juro. Desvalorizou o yuan.
Mas não fez nada que os cidadãos pudessem interpretar como garantindo o enriquecimento glorioso ou, pelo menos, que permita recuperar as perdas pouco gloriosas.
Não sei que formas poderá adoptar o descontentamento popular na China. Mas o PCC que tão eficazmente dotou a China de uma classe burguesa deveria estar atento à revolta da burguesia. As revoluções, mesmo burguesas, não deixam de ser revoluções.
Escreve à sexta-feira