Um golo ao Senegal (3-0) e outro decisivo à Nova Zelândia (2-1). Em Julho deste ano, Gelson Martins sai do anonimato assim-assim da 2.ª divisão e passeia-se pela passadeira vermelha de um Mundial sub-20. Com dois golos e tantas jogadas excitantes, o extremo vira figura nacional. Jesus inclui-o no plantel principal do Sporting e Gelson faz-se à vida.
Um minuto de jogo na Supertaça com o Benfica, dois minutos no jogo de abertura do campeonato, com o Tondela, 15 minutos com o CSKA Moscovo e agora uma parte inteira (a segunda) vs. Paços. O miúdo é um regalo para os olhos. De Jesus. "Depositamos muita esperança nele. É um miúdo com jogo de rua, ainda joga muito sozinho mas tem uma qualidade enorme. Já tem conhecimento táctico do jogo e estava a mexer com o jogo até à expulsão [de João Pereira]. Depois disso, esteve bem numa posição que não conhece. Podemos rentabilizá-lo e fazê-lo crescer. Era o jogo certo para ele, face às características que tem e não estou arrependido."
Miúdo de rua, parte 3. O primeiro de todos é Vítor Baptista. E é Mário Wilson quem o carimba dessa forma. Até John Mortimore, o treinador inglês do Benfica em 77-78, o admite sem pestanejar. Refilão (diz constantemente ser o mais mal pago do plantel) e irreverente, contorna esses defeitos com a classe dos predestinados através de lances geniais e golos sensacionais. Um deles acontece a 12 de Fevereiro de 1978, com o Sporting. Seria o seu último golo pelo Benfica. A bola chega-lhe pelo ar, ele pára com o peito à entrada da área e dispara sem a deixar cair. Indefensável. À obrigatória festa, segue-se o episódio caricato: Vítor dá-se conta do desaparecimento do seu brinco da orelha esquerda, que havia custado para cima de dez contos segundo ele, e impede o reinício do jogo para procurar, centímetro por centímetro, o objecto no relvado face à risada geral.
O segundo miúdo de rua é Lixa, assim alcunhado por Quinito no Vitória de Guimarães. Corre o ano de 1999 e o Vitória recebe o Alverca, oportunidade ideal para lançar à titularidade o trio Alvarez, Paiva e Lixa. O esquerdino parte a loiça toda e é eleito o melhor em campo pela imprensa. Na conferência de imprensa, Quinito sorri de orelha a orelha. "Lixa é um miúdo de rua. Finta, e muito. Coisa rara no futebol actual. É um encanto." Quatro dias depois, estreia-se na selecção sub-21 de Jesualdo Ferreira, como substituto de Maniche, e marca o golo da vitória sobre a Hungria (2-1), no Estoril, na qualificação para o Euro-2000. Segue-se o vira minhoto em Braga: três assistências e um penálti cometido sobre si na clara vitória por 4-2, no 1.º de Maio. Vem então o Porto.
O jogo está para ser adiado, tal a chuva torrencial. O árbitro Isidoro Rodrigues conversa com os responsáveis das duas equipas e esperam-se 15 minutos. O campo está melhor. Menos mau, vá. Aos 40 minutos, o avançado portista Romeu impede a saída de bola de Lixa. Crac, Lixa nunca mais será o mesmo. É o próprio a contar estes detalhes. "Na véspera do jogo, estava a experimentar uma roupa nova para uma festa de aniversário e, quando me olhei ao espelho, pensei: 'f…, amanhã ainda vou ter um azar e lá se vai a roupa." Outro mau pressentimento acontece no campo. "Sou muito animado, mas naquele dia estava triste, não sei bem. Quinito apercebeu-se de algo e perguntou-me por que razão não cantava e sorria como era normal.”
Quinito leva as mãos à cabeça e esconde a cara na altura da substituição de Lixa. "É o menino da rua que se aleija. Não é o menino de ouro, é o da rua. É um sonho. É o menino que jogava na rua descalço, os outros com sapatos, mas ele era o melhor. Ele é o Vítor Baptista lá do sítio dele. Esta situação tocou-me. A empatia que tinha com o Lixa era grande e a lesão é tão grave que me deixa preocupado até em relação ao futuro." Com razão. Lixa demora dois anos a reentrar no sistema. Mas já não é mais o Lixa. Abandona o futebol em 2006, no Odivelas, e vive agora em França, com a família.